Capítulo 2

91 9 0
                                    

  Encontro Glória na mesa tomando o seu café quando chego à cozinha.
  — Bom dia, Maroca. Dormiu bem? — sorrio ao ouvir o apelido.
  Um dos meus favoritos e há tempos não ouvia.
  — Bom dia, Glória! Ter dormido melhor, impossível. E a senhora?
  — Bem.
  Paro de frente à mesa e observo ao redor.
  — Qual a programação de hoje?
  Porque eu estava desesperadamente em busca de movimento, muito embora devesse começar a falar com o tal contato passado por Rodrigo.
  O número estava lá, mas eu passava bem longe dele. Envergonhada demais para chegar na pessoa.
  Glória toma um gole de seu café.
  — Teus pais saíram e deixaram um bilhete na geladeira.
  Relanceio a porta inox e pisco para o post-it amarelo que me passou despercebido.
  — Obrigada...
  Vou até o eletrodoméstico, aproveitando que pretendia pegar o leite e passo os olhos no bilhete. Reconheço de cara a letra da minha mãe:

  Mari, saímos com Gui, preciso que vá no supermercado e compre: sabão líquido, pão, queijo, ervilha e milho. H O J E! Vem visita. Beijinhos, cuidado.

  Rabiscos de carinhas felizes embaixo delatam Guilherme se intrometendo no recadinho.
  Por um momento fico imaginando quem viria, mas trato logo de tomar café e me arrumar para sair.
  Caminho até o supermercado e pego uma cesta na entrada, o cheiro de sacolas e tudo o mais invadindo as narinas. Eu não diria que desgostava do odor.
  Varrendo as prateleiras de sabão, franzo o cenho.
  Se essas compras são para a chegada da visita, qual a lógica do sabão líquido? Nova iguaria?
  Ok, faz sentido que sirva para reabastecer o do banheiro.
  Deposito o produto na cesta e parto em busca das outras coisas. Travo no corredor central quando relanceio um festival de cor na prateleira, como um ímã me chamando.
  Dou passos para trás, os olhos brilhando assim que adentro a seção de porcarias. Especificamente, biscoitos.
  Me seguro para não encher a cesta de pacotes e civilizadamente, coloco pelo menos dez.
  — Um pra mim, outro pra eu, mais um pra Ju, a lombriga. Cinco pra minha vaca...
  Mordo a língua ao me notar falando sozinha e olho ao redor desconfiada.
  Calmamente, saio em busca do milho e ervilha.
  — Minha nossa Senhora — exalo alto e retorço os lábios. — Qual o problema com quem instala essas prateleiras?
  Quer dizer que baixinhos não comem milho e ervilha? Para piorar, não há outra lata embaixo deixada por algum preguiçoso.
  — Malditos preguiçosos.
  Pondero entre pedir ajuda ou procurar em outro mercado, até decidir que eu consigo fazer isso. Mesmo sem ser de maneira que meus pais aprovassem. É só subir na prateleira...
  Acabo pendurada como uma criança tentando pegar lanche no armário alto proibido.
  Uma mão se eleva atrás de mim e pega a maldita lata. Desço e giro os calcanhares, já com o agradecimento na ponta da língua.
  Paro no mesmo instante que reconheço o rosto.
  Céus. Quais as chances?
  Os cabelos já não batiam mais nos ombros como da última vez em que o vi, mas os olhos creme de avelã eram os mesmos. O corpo sarado era quase o mesmo, mas o rosto com as bochechas levemente coradas continuava igual.
  — Mi-Miguel?!
  Ele olha para a lata, a prateleira e então para mim.
  — Prazer. Miguel, com um mi. — O meu ex abre um sorriso encantador. — E aí?
  Quase perco a força nas pernas.
  — O que tu tá fazendo aqui?! — soo mais desesperada do que pretendia.
  — Vários nadas, só te perseguindo. Se tô no supermercado é porque vim comprar comida, abestalhada.
  Cruzo os braços.
  — Justamente aqui? Nesse supermercado, nesta seção?
  — Virou a nova dona? — Arqueio uma sobrancelha, ele passa a mão no cabelo curto. — É o mais próximo da minha casa, tu sabe. E a seção, tava passando e te vi quase tirando um braço pra alcançar a lata. — Ele a balança na minha frente e continua: — Mas já tô de saída, desculpa a invasão de propriedade privada.
  O tom final beirou a zombaria.
  Ele se vira para partir levando a lata. Minha boca entreabre.
  — Ei!
  Miguel gira o calcanhar e me dirige um sorriso travesso. Gesticulo para o produto. Meu ex retorna e estende a mão.
  — De nada?
  Dou de ombros.
  — É, brigada.
  Miguel solta um suspiro. Raciocino tempo e espaço, pensando na veracidade de suas palavras e que eu me desesperava por besteira, então retomo:
  — É verdade, desculpe. E obrigada!
  Uma pausa estranha se estende entre nós.
  — Eu vou... — ele relanceia o próprio carrinho.
  — É, também... — me lembro da cesta esquecida no chão.
  — Como foi seu intercâmbio?
  Frenética e feliz por mudar de assunto para um que já se tornou corriqueiro na minha vida, solto rápido demais:
  — Incrível! — Recuo diante de seu semblante surpreso. Balanço a cabeça. — Foi ótimo, conheci bastante gente legal lá. Bem diferente a cultura. — Sacudo o colarinho da camisa, buscando aliviar o calor e solto o ar. — Produtos são diversificados... aqui é tão quente comparado. — Olho ao redor. — Tá calor ou sou só eu?
  Solto o ar entre dentes. Ele aponta numa direção.
  — Quer ir pra parte de frios?
  Assinto veemente.
  — Por favor. — Sem me segurar, dou risada. — Esqueceu o coração lá?
  Ele me encara momentaneamente, aparentando decidir entre responder ou não.
  Sumo com o sorriso e abano a mão em dispensa.
   — Tô tirando onda.
  Andamos lado a lado, eu segurando a cesta e ele com o carrinho.
  — Biscoitos? — indaga, relanceando minhas compras.
  — Eu amo — disparo.
  — Quem?
  Estreito os olhos.
  — Biscoitos.
  Sua risada desperta a versão nervosa da minha e chegamos à seção de frios. Paramos junto a um refrigerador vago para bater papo.
  A queda de temperatura foi uma benção.
  — E como vai sua vida?
  — Minha vida? Desde quando? Desde que você me largou e eu fiquei sem entender nada ou... — Engulo as palavras e retomo, apoiando uma mão na cintura, a voz afinando: — Vai bem.
  Miguel olha ao redor.
  — Mari, eu não acho que a gente precisa discutir relacionamento aqui, né?
  Olho ao redor e nego com a cabeça.
  — Não mesmo. O calor derreteu meu cérebro, desculpa. — Mais uma pausa desconfortável. — O que tá fazendo da vida?
  O meu ex subitamente se alegra em falar sobre si.
  — Comecei a faculdade de direito...
  Finjo surpresa e parabenizo o jovem pela conquista, abrindo a deixa para ele tagarelar sobre o curso, cadeiras a pagar e caminhos que pretende seguir.
  Meus joelhos já estavam cansados da mesma posição quando ele decide que a conversa havia prolongado demais.
  Pisco. Sem querer, eu poderia passar horas demonstrando interesse ao ouvir Miguel falar e falar.
  Deixá-lo sustentar um monólogo era a oportunidade perfeita para observar seus olhos e boca. Castigo minha mente pelo pensamento.
  O rapaz se despede com a promessa de me chamar para conversar mais tarde na internet e concordo veemente.
  Depois que ele vai, recupero o raciocínio para ter a certeza de que não falta mais nada, por fim sigo para o caixa.
  Sorrindo para o nada na fila me perco facilmente em lembranças. Miguel e devaneios combinavam tão bem quanto São João e Caruaru.
  Um pensamento me ocorre, logo me repreendo por ser tão idiota e esquecer da namorada dele. Sinto o coração murchar como uma hemácia que sofre crenação.
  Levo menos de um minuto para solicitar o carro de aplicativo.
  E pensar que de tantas novidades, ele havia omitido aquela. Estalo a língua. Talvez quisesse nos poupar de clima mais estranho do que aquele já assolado.
  Pago tudo, pego as sacolas e espero fora do estabelecimento com a sensação de ter esquecido algo.
  Mas se ele contasse numa boa, assim teria continuado. Não mesmo, Mariana, você surtou e citou o término na frente dele. Mais de uma vez.
  A motorista chega e adentro o carro com as compras.
  Envolvida na discussão mental, cumprimento a mulher e volto a brigar com os meus dois anjinhos.
  Nosso relacionamento era bom, até ele decidir ser insuficiente, que um ano era demais. Eu ouvira falar de gente que esperou o companheiro voltar do intercâmbio, achei que fôssemos do mesmo jeito, pelo visto Miguel me iludiu direitinho.
  E mesmo que ele não quisesse se prender a alguém a quilômetros de distância, nos momentos de solidão, eu me pegava imaginando ele vindo atrás de mim assim que eu pisasse em Recife de novo.
  Ingênua demais. Miguel preferiu se prender a outra pessoa. Tínhamos a faca e o queijo. Dei as costas, ele jogou a faca fora e deu o queijo para os ratos.
  Travo.
  Queijo. De olhos arregalados e vendo os carros ficarem para trás ao nosso redor, cada vez mais perto de casa.
  Engulo em seco.
  Suspendo o corpo no banco, levemente desesperada.
  — Moça, eu esqueci o pão e o queijo. — Ela diminui a velocidade. — Por favor, dá uma parada na padaria, eu vou e volto rapidinho. Pelo amor de Deus, mainha vai me matar.
  A mulher olha para mim e assente, lutando para segurar o riso diante do meu desespero.
  — Não, sem problemas.
  Suspiro de alívio e espero o veículo parar antes de saltar rapidamente.
  Entrei e saí correndo.
  De volta ao carro, recosto no banco e solto o ar.
  — Sabe o que é isso? Nunca se distraia com amores passados, não vale a pena.
  Ela ri.
  — Arrependida do término? — indaga.
  Balanço a cabeça.
  — Queria eu. Foi abrupto, eu não queria ou esperava. Aumentei tanto as expectativas que elas me esmagaram.
  A motorista assente.
  — A gente só aprende na lapada. — Ela troca de pista e desvia de um buraco. — Mas quando levantamos, estamos prontas pro próximo até alguém digno chegar. Daqui pra lá é chão, mas a gente consegue. Já viu perfeição vir de primeira?
  Nego com um menear.
  — Até pedra precisa de polimento pra alisar — completa.
  Fico com aquilo na cabeça até chegar em casa, agradecer a viagem e guardar as coisas.
  Logo depois chegam meus pais com meu irmão.
  — Viu o recado? — indaga minha mãe.
  — Acabei de chegar. Onde vocês foram?
  — Resolver problema e comprar roupa pra teu irmão.
  Apoio as mãos na cintura, indignada.
  — Por que só pra ele?
  Minha mãe me corta com o olhar, desafiando a contrariá-la mais.
  — Tem um guarda-roupa ainda mais cheio depois que chegou de viagem e não se contenta com o que tem? — Fecho bem a boca reconhecendo a verdade dela. — Guilherme tava precisando de roupa nova, você não.
  E durma com essa, foi o que ficou implícito. Emito um estalo de língua, aliviando a postura.
  Evito ladrar um mimado quando meu irmão passa por nós direto ao quarto.
  — Quem vem hoje?
  — Claudio e Rosa.
  Comemoro de súbito.
  A única dupla de políticos que tinha crédito no meu coração. Meus tios. Ambos eram claramente os meus favoritos, assim como a filha.
  Quando chegam, já estou pronta e corro para atender o portão. O carro mal cruza a entrada, ouço o grito de alegria da minha prima.
  O veículo para, ela desce e vem correndo me abraçar. Retribuo com a mesma emoção e um tanto de dificuldade, os braços quase imobilizados por Ana.

  — E como vai minha nerd favorita? — quis saber minha prima.
  Nerd, por tanto tempo na infância eu negara ser, pela forma como associava aos estereótipos gerais. Crescendo, entrei na onda. Aproveitando para ser uma aluna que orgulhava os pais quase sempre e ao mesmo tempo, ajudava os outros com dificuldades.
  Isso me deu boas chances de interagir com os vários grupos da turma.
  — Só tá bem se você tiver igual — respondo.
  Ana me aperta, balançando nossos corpos. Emito um som de dor misturado a falta de ar.
  Uso a primeira oportunidade que afrouxa o aperto. Puxo-a para o terraço.
  — Quero fofoca. Tudo. Timtim por timtim.
  Sem delongas, ela executa muito bem o papel, tagarela como é. Nem sente dificuldades em derramar furos da vida alheia.
  Com uma única pausa, ela busca na memória mais histórias e sofre um sobressalto.
  — Meniiiiina! Sabe Pedro?
  Franzo o cenho.
  — Teu Pedro?
  — Tem outro?
  Inclino a cabeça de lado.
  — Juntando a quantidade de Pedros que conhecemos, dá pra superlotar Marte.
  Ela ri e balança a cabeça.
  — Certo, meu ex Pedro.
  Fico escutando, sorrindo e acenando. De vez em quando faço caras e bocas não forçadas. E em questão de minutos descubro que minha prima se enrolou num relacionamento com um tal de André. Pedro o ex que a traiu, levou gaia da nova namorada.
  Vazaram fotos íntimas de um colega em comum do nosso ensino médio. Outra menina que fez alfabetização com a gente será mãe, a minha professora do quarto ano sofreu um acidente há pelo menos dois meses e está em coma. Com essa notícia terrível, pedi pausa e digeri a tristeza por minutos antes de retornar.
  Escutar todo o resto me faz perceber o quanto estive isolada daqui, quando pensava estar tão globalizada.
  Muito embora a ideia do intercâmbio, na teoria, fosse me desligar do Brasil para mergulhar de cabeça no idioma. Alguns dias eu conseguia, outros eu jogava tudo para o ar.
  A conversa se adaptou à mesa do almoço em família e voltou para nosso clubinho de dois assim que nos enfurnamos no quarto.
  Nossos pais comentando sem parar a mesma coisa.
  — Ah, ninguém mais vai ver elas — comentou meu pai assim que nos viu esgueirar para o corredor. Ele se volta aos adultos: — Vão dizendo tchau. Só ano que vem agora.
  Respondemos com caras feias e sumimos para eles.
  Jogo-me na cama e abraço um travesseiro. Ana opta por girar na cadeira da escrivaninha.
  Havia tanto a conversar. Pôr o assunto acumulado em dia nos tomaria uma semana se deixássemos.
  Quase uma hora mais tarde, Ana se cansa de jorrar palavras e busca as minhas histórias. Penso na única que vinha me pegando no pé há dias, desviando do assunto Miguel por ainda digerir mais cedo. Conto sobre o rapaz do quiosque.
  — Meu. Deus. Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! — e depois do que parece ter sido o vigésimo meu Deus, ela soltou o penúltimo: — Meu Deus.
  — Meu Deus — concordei, as sobrancelhas arqueadas.
  E finalmente:
  — Meu Deus! Isso é sério? Se tu conseguir essas amizades e se apresentar, faz um curso e tudo perfeito. — Ela gesticula com as mãos. — Aliás, sobre o curso. Vai fazer aonde?
  — Ainda tô decidindo entre os lugares. Procurando gente que já passou por eles pra tirar as dúvidas. Até meses atrás eu tinha essa vontade de... ficar presa na federal — Ana ronca uma risada. — Mas descobri que o teatro de lá não é pra mim.
  Minha prima assente devagar.
  — Entendi. Mas e esse boyzinho?
  A jovem se refere a Rodrigo. Curiosidade permeando seu semblante.
  Engulo em seco. Ah, Ana, você não vai me cutucar.
  — Ah, parece ser bem legal, pelo menos foi simpático comigo nos dois momentos que a gente se falou.
  — Dois, ok. — Analisa em silêncio por um instante. — Potencial pra substituir Miguel? Deixa eu ver a foto.
  Ana estende a mão para o meu celular. Coloco-o nas minhas costas.
  — Não. Para com isso. — Mordo a boca de leve. — Alguém terá potencial pra substituir Miguel?
  Ana solta o ar.
  — Supera. — Minha prima hesita. — Ele tá em outra, tu sabe, né?
  Dou um aceno pequeno.
  — Ótimo, já é um motivo pra pular fora. Nova regra: nada de machos comprometidos.
  Ato as mãos no colo e sacudo os joelhos.
  — Pois bem, também tô indisponível.
  Ela abaixa o queixo, levemente surpresa.
  — Não tá?
  Levo uma mão ao ouvido e mudo para a voz de mensagem automática.
  — Mariana Bragança está ocupada cuidando da carreira. Tente novamente mais tarde.
  Ana sorri e aprova.
  — Gosto assim.

  Concordo com um sorriso.
  Me ocuparia com isso mesmo, porém se Miguel resolvesse bater na minha porta solteiro. Eu duvido que resistiria.

DestinadosDonde viven las historias. Descúbrelo ahora