Capítulo 1

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  Ficar sozinha em casa era como um sonho semanal realizado e a libertação de meu espírito caseiro-aventureiro.
  Sem carnaval em Boston, me restou colocar a playlist de músicas e transportar minha mente de volta para cá. Claramente não era a mesma coisa confinada no apartamento pequeno, onde um pulinho me fazia temer a madeira da casa se partir.
  Digito rapidamente uma canção na barra de pesquisa e conecto o celular à caixinha de som.
  Olho para os pés e mexo os dedos, subindo e descendo contra o macio tapete rosa.
  — Confio em vocês, amigos. Lembram daquela vez no fundamental? — Dou play e a inconfundível junção de mil trompetes iniciando o toque de vassourinhas preenche o silêncio do quarto. — Não aprenderam os passos pra nada.
  Arrisco uma troca de pés e outra até sentir confiança no que estava fazendo. Mantive o olhar baixo, temendo erguer o queixo e ver uma lagartixa pulando igual louca no reflexo do espelho.
  Nas trocas de passos eu já arriscava sorrir e uivar alegre, até tropeçar em meu próprio pé e cair no chão.
  Suspiro frustrada e apalpo a cama procurando o celular.
  — Foi quase — solto e desligo a música.
  Incapaz de levantar e sentindo o corpo pegajosamente nojento, ligo o ventilador e fico largada no chão, igual estaria num dia inteiro de domingo. Ociosa, adiando todas as obrigações.
  Navego na internet com a desculpa de me atualizar das notícias e acabando sugada por ela, principalmente quando um nome me vem à cabeça.
  Ele, que me prometeu o mundo, mas quando chegou na hora de provar todo o seu amor no relacionamento a distância me deixou sozinha e deprimida, salva pela felicidade de estar fazendo o tão sonhado intercâmbio. Pelo menos eu estava deprimida fora do Brasil e recebendo likes por isso.
  Não que eu quisesse prendê-lo, longe de mim.
  Só não era me dar esperanças para depois jogar tudo pela janela do avião, junto comigo e sem paraquedas!
  Não literalmente, é claro.
  Perdida na corrente de pensamentos, foi tão fácil digitar seu nome de usuário na busca. Tão simples me perder no stalkear.
  A melhor relação de amor e ódio depois dos segundos volumes de livros, é stalkear. Amava saber cada fofoca perdida, odiava descobrir o que eu não queria que acontecesse.
  Com o maior cuidado para não curtir nada, verifico a página do meu não mais querido ex-namorado, Miguel Moura.
  Em pouco tempo descubro que continua morando no mesmo lugar, cursa Direito na universidade estadual – provavelmente se acha o presidente da OAB por isso –, comprou um carro com o dinheiro do papai e tem uma nova namorada, que por sinal é muito bonita.
  Sem pensar abro a página da beldade e me perco nas informações e fotos dela.
  Pulo de susto ao ouvir vozes ecoando pela casa. Me sentindo pega com a boca na botija, fecho a tela do notebook e olho para a porta bem a tempo de minha mãe enfiar a cabeça no vão.
  Mascaro uma expressão de cinismo.
  — Assistindo série? — Mamãe pergunta.
  Da sala, meu irmão grita alguma coisa. Imagino que com os amigos virtuais.
  Balanço a cabeça e relanceio a televisão desligada.
  — Colhendo informações sobre o curso de teatro — abro um sorrisinho.
  — E é?
  Balanço a cabeça afirmativamente rápido demais. Ah, ela já devia estar captando a mentira.
  — Uhum. Entre outras coisas — acrescento. — Sabia que alguns atores passam dias assistindo as pessoas da vida real agindo pra tentar passar uma interpretação fiel?
  A minha mãe se aproxima e senta na cama.
  — Ouvi dizer. Tu faria um negócio desses?
  — Soa interessante.
  — Certo, digamos que teu papel seja o da irmã mais velha que toma conta do caçula. — Estreito os olhos, prevendo onde aquilo vai dar. — E digamos que o menino esteja aperreando a mãe desde cedo para ir pra praia encontrar os coleguinhas, mas ela não pode levar por causa de uma reunião virtual em uma hora e meia...
  Minha mãe verifica o relógio no celular.
  — Eu vou com ele.
  — Obrigada — recebo um cheiro no topo da cabeça como demonstração de afeto. — Um banho seria bom.
  Faço uma careta e apoio o notebook no colchão. Levanto usando os cotovelos.
  Mamãe chama o carro de aplicativo enquanto me preparo e instigo Guilherme a se apressar.
  — Tá levando dinheiro? — indaga quando já estamos saindo de casa.
  O motorista a dois minutos dali.
  — Tô.
  — Cuidado. Voltem cedo. — Ela abre o portão e Guilherme voa para fora, buscando o carro. — Gui, não tome banho com o mar enchendo.
  O veículo para de frente à calçada e Guilherme adentra cumprimentando o motorista.
  Nossa mãe dispara um olhar para o celular.
  — Vou acompanhar a corrida de vocês.
  — Tá, tá bom. — Ela abre a boca para dizer mais alguma coisa. Me junto ao meu irmão e solto pela porta ainda aberta: — Tchau, mãe.
  Foi até rápido de casa a Boa Viagem com o trânsito livre, o motorista mal se aprofundou na conversa sobre o calor infernal quando parou numa vaga de estacionamento na orla.
   Desembarcamos e aposto corrida com Guilherme até a beira do mar.

DestinadosWhere stories live. Discover now