Capítulo 23

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De um arbusto não muito distante, Pax passou a noite toda e parte do dia seguinteobservando Miúdo. Só se afastou para aliviar a dor do lábio queimado na lamafria do rio e se alimentar dos pequenos peixes que encontrou mortos na margem.Com o olfato recuperado, ele farejava em busca de Arrepiada e Miúdo sempreque acordava de um de seus cochilos inquietos, para ter certeza de que aindaestavam vivos.Arrepiada tinha arrastado um pouco de vegetação até a árvore caída, paracobrir o irmão, e acomodado o corpo sobre o dele para mantê-lo aquecido. Só odeixou algumas vezes, mas, quando ela se ausentava, Pax assumia o posto aolado do corpo imóvel de Miúdo. Estava lá quando Miúdo finalmente acordou,com um choramingo.Acariciou o ombro dele com o focinho, para reconfortá-lo. Miúdo levantou acabeça. A dor e o medo eram como nuvens sobre seus olhos. Quando ele deuoutro gritinho, Arrepiada, que estava caçando ali perto, voltou correndo até oirmão.Pax recuou, respeitoso, mas Arrepiada só se deitou junto ao irmão, o rostocolado ao dele. Pax se inclinou até o ferimento de Miúdo e lambeu com cautela,por medo de como Arrepiada reagiria. Ela observou, mas não protestou.Pax, então, fez uma boa limpeza no ferimento. Miúdo o observava com umolhar confiante e não se encolheu. Quando Pax terminou, limpou o rosto e asorelhas de Miúdo. E Arrepiada permitiu.A raposinha adormeceu novamente, mas Pax permaneceu ao lado dos dois.Juntos, ele e Arrepiada observavam as movimentações no acampamento.Apesar de os humanos não terem voltado para a parte destruída do campo, oscheiros eram ameaçadores. Quando o vento trazia o cheiro de terra queimada, oshomens pareciam mais tensos. Mais deles haviam chegado ao acampamento,com mais máquinas. O rugido repentino de um motor ressoou, fazendoArrepiada pular de susto. Mas logo ela voltou a deitar a cabeça sobre a do irmão.Tenho que tirá-lo logo daqui.Os humanos não sabem farejar. Se não nos virem, não corremos perigo.Arrepiada olhou para ele e depois para os homens.Estaremos em perigo enquanto houver um único humano por perto.Arrepiada parecia diminuída, como se uma parte vital dela tivessedesaparecido. Pax não entendia por quê, mas sabia que era culpa dos humanos.Meu menino não oferece perigo. Ele não é como os outros. Não está doente deguerra.Os doentes de guerra são crescidos. O seu menino ainda é jovem.Não. Não é só isso. Pax sabia que estava certo, mas também se sentia confuso.No último ano, Peter tinha ficado mais alto e mais forte, a voz mais grave.Acima de tudo, seu cheiro tinha mudado — não mais o de uma criança. Ele nãoé tão jovem, mas não está doente de guerra. No último dia que o vi, ele cuidou demim, mesmo sofrendo. Caía água dos olhos dele.Os olhos dele estavam machucados?Pax pensou por um momento sobre o mistério do choro.Não. Quando ele machuca alguma outra parte do corpo, os olhos derramamágua. Escorre pelo rosto. Acho que essa água que sai do olho alivia a dor. Mas arespiração... ele tenta engolir o ar, como se estivesse se afogando com a água dedor.Arrepiada começou a lamber mais sangue seco do quadril do irmãoadormecido. Depois de um tempo, ergueu a cabeça para Pax, que viu nos olhosdela as coisas terríveis que os humanos tinham feito a sua família.Foi quando Pax entendeu uma coisa. Naquele último dia, Peter tinha jogadoum brinquedo no bosque. A água de dor escorria dos olhos dele, mas ele jogou obrinquedo mesmo assim. E não foi atrás.Meu menino não está doente de guerra, mas está mudado. Ele agora age comfalsidade.

PAXWhere stories live. Discover now