Capítulo 7

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No campo, o treinador começou a lançar bolas altas para treinar. Osjogadores eram os típicos garotos que se espera ver em um time de beisebol,todos musculosos e barulhentos. Peter encontrou o que queria observar: ummenino pequeno, de cabelo ruivo-claro em corte militar e camiseta vermelhadesbotada, jogando na posição de interbases. Enquanto os outros corriam de lápara cá como filhotes, aquele menino era uma estátua, mãos na cintura, olhosgrudados no taco do treinador. Assim que a madeira bateu no couro da bola, eledisparou. Conseguia chegar em todas as bolas que se aproximavam da área dele,apesar de ser tão baixo que parecia o irmãozinho caçula de alguém.Peter sabia que ele próprio não era o tipo de menino que se espera encontrarem um campo de beisebol, e se sentia ainda menos à vontade no banco dereservas, ganhando socos no ombro e ouvindo aquela linguagem chula, mas,quando estava em campo, era o único lugar em que se sentia realmente ondedeveria estar.Ele nunca tinha sequer tentado descrever a ninguém a sensação que o beisebollhe proporcionava, em parte por ser algo tão pessoal, mas principalmente porqueachava impossível ter palavras para explicar. "Sagrada" era a que chegava maisperto, e "calma" ajudava um pouco, mas nenhuma das duas era a certa. Peterteve a estranha sensação de que o menino ruivo entendia aquela calma sagrada eque também a sentia, inclusive naquele momento.O treinador tinha se posicionado e estava arremessando bolas. Os rebatedoresestavam rebatendo no chão ou treinando pegar bolas baixas, e os jogadores docampo externo enfim prestavam atenção, ou pelo menos estavam virados nadireção certa. O interbases ainda era o melhor a observar: parecia eletrizado, oolhar atento às jogadas.Peter reconheceu aquele tipo de concentração. Às vezes chegava a sentir osolhos secos, porque esquecia de piscar, absorvido em cada movimento de cadajogador. E ele sabia que valia a pena. Assim como o menino de camisetavermelha, Peter era o dono do seu território em um campo de beisebol. Eleamava aquele espaço, da grama aparada até o cheiro de terra seca. E o que maisamava era a rede que ficava na extremidade. A cerca que lembrava a eleexatamente o que era sua responsabilidade e o que não era. Se uma bola caíanaquela cerca, ele tinha que pegá-la. Se uma bola passava voando por cima, nãoera mais problema dele. Simples assim.Peter volta e meia pensava que as responsabilidades da vida deveriam tercercas assim, altas e claras.Ele havia feito terapia por um tempo, após perder a mãe. Com apenas seteanos na época, não tinha vontade de falar, ou talvez só não soubesse fazer caberem palavras aquele tipo de perda.A psicóloga, uma mulher de olhos gentis e uma comprida trança grisalha,disse que não tinha problema, não tinha problema algum. Assim, Peter passavatodo o tempo das sessões brincando com carrinhos e caminhões, fazendo-os baterdois a dois. Era uma caixa cheia deles; posteriormente, Peter chegou à conclusãode que a mulher tinha comprado uma loja inteira de brinquedos para ele. Nofinal, ela sempre dizia a mesma coisa:"Deve ter sido difícil para você. Um dia qualquer, sua mãe pega o carro parair ao mercado e não volta mais."Peter nunca respondia, mas se lembrava da sensação de exatidão que aquelaspalavras despertavam nele, a mesma sensação que durava aquela uma hora desessão — como se finalmente estivesse no lugar certo e não houvesse nada maiscerto que bater aqueles carrinhos e ouvir que devia ter sido difícil para ele.Até que, um dia, a psicóloga disse outra coisa."Peter, você sente raiva?""Não", respondeu ele na mesma hora. "Nunca."Era mentira. Depois disso, ele se levantou do chão e pegou uma bala de maçãverde da tigela que ficava ao lado da porta, exatamente como fazia no final decada sessão, e foi embora. Era o acordo que tinha com a psicóloga de olhosgentis: quando ele chegasse ao limite, podia pegar uma bala e encerrar a sessão.Ao sair do consultório, Peter chutou a bala para um bueiro e, quando estavavoltando para casa, disse ao pai que não ia voltar. O pai não discutiu. Na verdade,pareceu aliviado.Mas Peter não. Será que a psicóloga gentil sabia desde o início que ele tinhaficado com raiva naquele último dia de vida da mãe? Que havia feito uma coisahorrível? Que a mãe não o levou ao mercado como punição? Será que ela oculpava pelo que tinha acontecido?Meses depois, Peter conheceu Pax, graças a uma raposa que encontrouatropelada na beira da estrada. Fazia pouco tempo que vira o caixão da mãesendo baixado, e ele sentiu que precisava fazer o mesmo com o corpo do animal.Foi procurar um bom lugar para isso quando encontrou a toca, com mais trêsfilhotes, os corpos já enrijecidos e frios, e uma bolinha de pelo cinza ainda quentee respirando. Era Pax. Peter o colocou no bolso do casaco e o levou para casa."Vou ficar com ele", avisou Peter (não pediu, avisou)."Tudo bem, tudo bem", respondeu o pai. "Pode ficar por um tempo."O filhote passou a noite toda choramingando. Ao ouvir aquilo, Peter pensouque, se pudesse ir de novo à psicóloga de olhos gentis, ficaria batendo oscarrinhos de brinquedo dia e noite, sem parar, para sempre. Não por raiva. Sópara que todos vissem.Pensar em Pax só fez a velha serpente da ansiedade apertar seu peito commais força. Precisava voltar a seguir em frente, compensar o tempo perdido. Otreino estava terminando, os garotos deixavam o campo, tirando os equipamentosao passarem pelo banco de reservas. Assim que todo mundo foi embora, Peterdesceu da arquibancada, pegou a mochila e a colocou nos ombros, mas, quandoestava cruzando o gramado, viu o interbases.Ele hesitou. Precisava ir logo, para se misturar aos últimos garotos que saíamda escola, mas o restante do time tinha dado o fora, deixando que o meninoguardasse todo o equipamento e voltasse sozinho, e Peter sabia como era isso. Elepegou algumas bolas e as entregou ao interbases.— Oi.O menino pegou as bolas com um sorriso cauteloso.— Oi.— Jogou bem. Aquela última bola baixa... Foi corajosa.O interbases desviou o olhar e mexeu na terra, mas Peter reparou que elegostou do elogio.— Ah, o primeira base fez parecer mais fácil do que foi.— Que nada. Você plantou aquela bola. O primeira base de vocês nãoconseguiria pegar nem uma gripe sozinho. Com todo o respeito.O menino abriu um sorriso sincero para Peter.— É. Ele é sobrinho do treinador. Você joga?Peter fez que sim.— Na defesa central.— É novo aqui?— Ah, eu... eu não moro aqui, eu... — Peter apontou com a cabeça em umadireção vagamente ao sul.— Hampton?— É, Hampton, isso.O menino fechou a cara.— Está espionando para o jogo de sábado? Palhaço. — E cuspiu no chão,antes de voltar ao banco de reservas.Ao sair da escola, Peter se parabenizou por ter conseguido pensar rápido ecobrir os rastros da fuga, mas, por algum motivo, também se sentia um poucomal. Na verdade, se sentia péssimo.Ele afastou o sentimento (como era mesmo aquilo que o pai dizia sobresentimentos, alguma coisa sobre valer pouco mais que um tostão?) e olhou para orelógio. Quatro e quinze. Tinha perdido mais de três horas.Peter acelerou o passo, mas, quando chegou à praça da cidade, atravessou arua para evitar a lojinha e se obrigou a andar normalmente ao passar por umabiblioteca, um ponto de ônibus e uma lanchonete. A partir dali, contou mil passose só então levantou a cabeça.Olhou o relógio de novo. Quatro e cinquenta. Naquele momento, o avô deviaestar arrumando as coisas para sair do trabalho. Peter o imaginou andando atéseu velho e enferrujado carro azul, colocando a chave na ignição.Essa imagem mental fez a ansiedade voltar com força, deixando Peter semfôlego. Ele pulou uma cerca baixa de madeira e aterrissou na vegetação rasteira.Seguiu por uns bons dez metros, até surgirem árvores mais altas que ele, até aansiedade diminuir e permitir que voltasse a respirar direito, antes de virar emum caminho paralelo à rodovia. O terreno ali era mais difícil, mas, quinzeminutos depois, lá estava: a estrada.Ao se aproximar da pista, ele se abaixou. Quando não estava passandonenhum carro, correu até a cerca de arame, escalou e caiu do outro lado, ocoração disparado. Pronto, tinha conseguido.Peter se embrenhou entre as árvores e procurou um bom ponto em quepudesse virar para o oeste. Em poucos minutos, encontrou: uma estradinha deterra perpendicular à rodovia. Quer dizer, não passava de um caminho aberto nomato, na verdade, mas ia na direção certa e seria fácil de percorrer a pé à noite.Seguiu por ali.Por um breve período, conforme avançava, o aglomerado de árvores emcada lado do caminho foi ficando mais denso e, no silêncio, o menino só ouvia ospios dos pássaros e os esquilos se movimentando. Peter se deu conta de que nãoveria sinais de civilização por um bom tempo. A ideia o animou.Só que, alguns minutos depois, a estrada fez uma curva e passou aacompanhar um velho pasto pontilhado de árvores frutíferas retorcidas. Ummuro de pedra contornava o campo e um celeiro baixo se erguia no canto maisdistante. Mesmo sem ver nenhuma luz acesa nem um carro ou um caminhãoparado por ali, Peter sentiu o coração murchar. O celeiro parecia ter sido pintadofazia pouco tempo, e algumas das telhas tinham a cor rosada de madeira nova.Aquela estradinha levava à casa de alguém. Pior: talvez levasse a uma estradamaior, que o atlas não mostrava por ser antigo demais. Com certeza, não era umatalho pelas colinas.Peter largou a mochila e se sentou em uma pequena saliência no muro,exausto e morrendo de fome. Tirou as botas e as meias. Duas bolhas enormeslatejavam, uma em cada calcanhar. Iam causar uma dor terrível quandoestourassem. Ele pegou o outro par de meias no fundo da mochila e as colocoupor cima das usadas. Depois, apoiou a cabeça na pedra áspera, que aindaguardava um pouco do calor do dia. O sol pairava logo acima das árvores,jogando sobre o campo um brilho cor de pêssego.Peter pegou as passas e comeu uma de cada vez, tomando pequenos goles deágua entre uma e outra. Em seguida, pegou o queijo e quatro biscoitos salgados.Comeu o mais lentamente que conseguiu, contemplando o sol acima do pomar, eficou surpreso ao descobrir que conseguia acompanhar o movimento da descida.Como tinha vivido doze anos sem saber isso sobre o pôr do sol?Ele se abaixou para amarrar o cadarço das botas e, quando ia se levantar, viuum cervo. O animal saiu do bosque e entrou no pomar. Peter prendeu arespiração, pois o pomar foi se enchendo: no total, catorze cervos, quecomeçaram a pastar. Alguns davam mordidinhas nos galhos baixos das árvores.Peter voltou a se sentar. O cervo mais próximo, uma fêmea ao lado do filhotemalhado, virou a cabeça para olhar diretamente para ele. O menino levantou apalma da mão devagar, na tentativa de mostrar que não pretendia fazer mal. Afêmea então se colocou entre Peter e o filhote, mas logo voltou a baixar a cabeçapara continuar a comer grama.De repente, o ar puro do crepúsculo foi rasgado pelo grito agudo de uma serracortando madeira. O som veio de algum lugar atrás do celeiro. Os cervoslevaram um susto, todos ao mesmo tempo, e saíram correndo para o bosquecada vez mais escuro, as caudas brancas balançando. Antes de partir junto com ogrupo, a mesma fêmea encarou Peter outra vez, com um olhar que pareciadizer: Vocês, humanos... Vocês estragam tudo.Peter saiu dali. Na estrada, metade dos carros já passava com os faróisacesos, e o menino tinha a sensação de que todos estavam virados para ele.Afastou-se novamente da estrada, de cabeça baixa.O chão ali era esponjoso e cheirava a turfa. Peter estava avaliando se valeriaa pena acender a lanterna quando o pé afundou em algo molhado. Ele se segurouem um galho para içar o corpo da poça, mas era tarde demais: já sentia a águagelada do terreno pantanoso entrando nas botas. Soltou um palavrão. Não tertrazido mais meias: outro erro. Só esperava que fosse o último da viagem.No entanto, ao voltar para a área mais alta do terreno, ele cometeu outro erro,bem mais grave.Prendeu o pé direito em algumas raízes e caiu. Ouviu o osso se quebrar — umestalo baixo e abafado — na mesma hora que sentiu uma pontada muito forte.Ficou ali sentado, ofegante e sentindo aquela dor intensa por um bom tempo, atéque finalmente soltou o pé e tirou a bota, fazendo uma careta de dor a cadamovimento. Puxou as meias molhadas com jeitinho e se assustou com o que viu:o pé já estava inchado.Ele colocou de novo as meias, quase chorando de tanta dor, e trincou os dentespara enfiar o pé de volta na bota antes que inchasse ainda mais. Então, foirastejando até uma árvore e se segurou no tronco para se levantar. Tentou apoiaro pé no chão, mas quase caiu de novo. Era a pior dor que ele já tinha sentido.Diante daquilo, o polegar que tinha quebrado certa vez parecia uma picada demosquito.Não conseguia andar.

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