Capítulo 9

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boca ficou seca como um deserto, mas ele conseguiu responder:— Não tenho taco.A mulher abriu um meio-sorriso e deu uma rápida piscadela.— Assim é melhor. Já tem cara de verdade. Qual é o seu nome?Peter disse seu nome.— Então, Peter Sem Taco, o que houve com seu pé?O menino manteve os olhos na faca enquanto desenrolava o suéter do pé.Bastou esse leve movimento para ele sentir uma dor que o assustou. Tremoressacudiram todo o seu corpo, e só então ele se deu conta do frio que estavasentindo.— Torci.A mulher se agachou, a perna de madeira em um ângulo estranho. Eledesviou o olhar.— Não se mexa — ordenou a mulher.Antes que ele sequer entendesse o que estava acontecendo, ela enfiou alâmina fria da faca por dentro da meia dele e, com um movimento rápido, arasgou. Peter cerrou os dentes para não gritar. O pé estava escuro e inchadocomo uma berinjela.— Você andou com esse pé?— Eu peguei um galho — respondeu ele, apontando. — Fiz uma bengala.Seu dedo tremia. Ele baixou a mão.A mulher assentiu e posicionou as mãos ao redor do calcanhar dele.— Vou mexer nele — avisou ela. — Preparado?— Não! Não toque no meu pé!Mas a mulher começou a mexer mesmo assim, dando instruções:— Movimente o dedão. Agora, todos os dedos. E o pé, de um lado para ooutro.Peter fez uma careta de dor, mas obedeceu a tudo.— Você deu sorte — disse ela, pousando o pé do menino sobre o suéter. —Fratura estável no quinto metatarso. Uma ruptura única e simples do osso maisexterno do pé.— Sorte? Como um osso quebrado pode ser sinal de sorte?A mulher se levantou, bateu com a perna artificial no chão perto da mão delee cravou a faca na madeira.— Ah, não sei... vamos ver... como só um osso quebrado pode ser sinal desorte...— Tudo bem, tudo bem, entendi. Desculpe.Ela arrancou a faca da perna e a apontou para ele.— Você é jovem. Umas seis semanas com um gesso e isso vai curardireitinho.— Como você sabe essas coisas? É médica, por acaso?— Já fui. Em outra vida.A mulher se levantou e olhou para Peter como se tivesse acabado de encaixaras peças.— Um fugitivo — concluiu ela, cruzando os braços e inclinando a cabeça. —Acertei? Você está fugindo?— Não! Não, eu só estava... caminhando.Ela bateu nos próprios ouvidos e franziu a testa.— Desculpe, não ouvi, meu detector de mentiras estava desligado. Tente denovo: você está fugindo de casa?Peter suspirou.— Não exatamente.— Então o que você estava fazendo à noite, passando pelo meu terreno comroupas e comida na mochila, Peter Sem Taco?— Eu não estou fugindo de casa, estou fugindo para casa.— Hum, está ficando interessante. Continue.Peter olhou pela janela que ficava acima de uma bancada de trabalho.Pinheiros altos cortavam o céu claro da manhã e alguns corvos discutiamescandalosamente nos galhos mais altos. Se ele pudesse, contaria qualquerhistória que o tirasse daquele celeiro e o levasse de volta à estrada e à busca porPax. Desapareceria no mesmo dia, pouco importava o quinto metatarsofraturado. No entanto, se havia alguma história do tipo, ele não conseguialembrar. Deixou o corpo desabar contra a parede.— A guerra. Estão chegando à nossa cidade. Estão vindo para pegar nossaágua. Meu pai teve que ir servir. Como minha mãe morreu, somos nós dois.Então ele me trouxe...— Quantos anos tem seu pai?— O quê? Trinta e seis. Por quê?— Então ele não teve que fazer nada. A convocação obrigatória é só paragarotos de dezoito a vinte anos. Ainda novos, fáceis de fazer lavagem cerebral.Se seu pai foi para a guerra, é porque quis. Foi uma escolha dele. Vamoscomeçar essa história com a verdade. É a regra aqui.— Tudo bem, claro. Ele escolheu ir. Aí ele me deixou na casa do meu avô e...— E você não gostou de lá.— Não é isso. É que... Hã, será que você pode guardar esse negócio?A mulher olhou para baixo e pareceu surpresa em ver que ainda estava com afaca na mão.— Que péssimos modos, Vola — disse ela, repreendendo a si mesma. —Esqueceu como receber um convidado? — completou, jogando a faca nabancada. — Continue.— Então. Eu tinha uma raposa. Quer dizer, eu tenho uma raposa. Nós asoltamos. Deixamos na beira da estrada. Meu pai disse que era o único jeito, maseu não devia ter feito isso.Desde que se afastara do pai, Peter vinha sendo atormentado pelas coisas quedeveria ter dito a ele. Tudo lhe veio à mente naquele instante.— Criei a minha raposa desde que ela era filhote. Minha raposa confiava emmim. Ela não vai saber sobreviver lá fora. Não importa se é "só uma raposa"...É assim que meu pai diz, "só uma raposa", como se não fosse um animal tãobom quanto um cachorro, por exemplo.— Sei, sei. Então você ficou com muita raiva e fugiu.— Eu não fiquei com raiva. Não estou com raiva. É que minha raposadepende de mim. Estou indo buscá-la.— Ah, não vai mais. Mudança de planos.— Não! Eu tenho que buscar minha raposa e voltar para casa.Peter ficou de joelhos, engolindo a pontada de dor que vinha do pé. Pegou ogalho e experimentou apoiar o peso do corpo por um segundo, mas logo voltou ase sentar, exausto só de ter feito isso.— Sério? Você realmente acha isso? Onde foi que vocês deixaram a talraposa?— A uns trezentos e vinte quilômetros daqui. Talvez mais — admitiu Peter.Vola riu.— Nesse seu estado, você não andaria nem dois quilômetros. Viraria umapresa lá fora. Isso se não morresse de hipotermia na primeira noite, porque nãoconseguiria caminhar a uma velocidade suficiente para se manter aquecido.Ela se apoiou na bancada, enrolando um dos lenços no dedo. Peter percebeuque ela estava tentando resolver alguma coisa. Não parecia tão maluca naquelemomento, apenas pensativa. E preocupada, talvez. Por fim, a mulher tomou umadecisão.— Alguém vai acabar vindo procurar você. Isso não é bom para mim. Querovocê longe daqui. Mas não posso mandá-lo embora com o pé assim, já tenhomuito peso na consciência. Vou imobilizar seu pé e lhe dar um remédio para ador, algum próprio para crianças, e depois...— Eu não sou criança. Tenho quase treze anos.Vola deu de ombros.— Depois, você vai embora. Tem uma oficina não muito longe daqui, naestrada. Ligue para o seu avô e peça que venha buscar você.— Eu não vou voltar. Vou buscar minha raposa.— Desse jeito, não vai, não. Só vai se apoiar nesse pé quebrado depois que oosso estiver bom. Seis semanas, no mínimo. Quando isso acontecer, você tenta denovo.— Seis semanas? Não, não é tempo demais. Minha raposa...— Não esqueça, garoto, que eu sei uma coisa ou outra sobre caminhar comuma perna só. Para se virar antes de o osso voltar ao normal, você teria queaprender a sustentar o corpo nos ombros e braços. Teria que desenvolver forçanessas outras partes. Se para um adulto é quase impossível, imagine para umacriança...— Eu não sou criança!Vola fez um gesto pedindo silêncio.— Então você vai voltar para o seu avô agora mesmo e cuidar desse osso.Mas antes vou imobilizar seu pé e arranjar uma muleta melhor que esse galho.Com essas palavras, a mulher se afastou da bancada e saiu do celeiro.Peter a viu desaparecer em um caminho ladeado de pinheiros, mancandotanto que parecia sentir dor ao caminhar. Ele rastejou pelo chão e guardou seuspertences de volta na mochila. Então, levantou-se e se apoiou na bancada. Oesforço o deixou tonto, e ele teve que se agarrar à madeira até se recuperar. O pélatejava forte agora. Após uma tentativa de apoiá-lo no chão, soube que não iaconseguir caminhar. Pelo menos, Vola daria um jeito. Logo ele conseguiria voltara andar. Tinha que conseguir.Subiu na bancada para esperar.Observou em volta, pois não conseguira ver direito o celeiro na noite anterior,mesmo com a lanterna. O chão estava perfeitamente limpo. Junto à porta haviasacos de sementes e fertilizantes empilhados de forma muito organizada. O localcheirava a feno limpo e madeira, não a animais, embora Peter ouvisse algumasgalinhas cacarejando ali perto.Sobre a bancada, que ocupava uma parede inteira do celeiro, havia pequenasferramentas e pedaços de madeira. Do outro lado, uma cortina de aniagem,escurecida contra o retângulo claro de luz da porta ao lado, cobria uma variedadede objetos pendurados na parede.Peter sentiu novos tremores, mas dessa vez não era de frio. Os objetoscobertos pelo tecido tinham a forma de cabeças humanas. Poderia ser umavariedade de coisas perfeitamente inofensivas, mas pareciam muito cabeçashumanas.A garganta do menino ficou seca e seu coração começou a martelar o peito.Tinha sido burro e descuidado. Tudo bem, era provável que a mulher maluca odeixasse ir embora (por que não deixaria?), mas talvez não. Peter encontrou afaca que ela havia deixado e apertou o cabo macio. Vola tinha vantagem emqualquer coisa que acontecesse, mas isso não era motivo para ele não tentar sedefender. Estava justamente guardando a faca no bolso quando a mulherapareceu à porta.— Beba isto — disse ela, entregando uma caneca a Peter e colocando umatigela ao lado dele.Peter cheirou a bebida.— É sidra — explicou Vola. — Tem um pouco de casca de salgueiro também,então beba tudo.— Casca de salgueiro?— A aspirina das selvas.O menino colocou a caneca na bancada. Não ia beber uma poção daquelamulher maluca.— Você que sabe — disse Vola, pegando a tigela e começando a mexer como dedo a pasta verde que havia ali dentro.— O que é isso?— Cataplasma. Com arnica para o hematoma e confrei para o osso quebrado.Ela fez sinal para Peter colocar o pé sobre a bancada.O menino sentiu um alívio imediato quando ela espalhou a pasta fria sobre apele quente e retesada. Ela desamarrou uma bandana da alça do macacão e aenrolou no pé dele, reforçando com uma segunda bandana. Depois, limpou asmãos na roupa.— Qual é a sua altura?— Um e sessenta. Por quê?Vola não respondeu. Remexeu em uma pilha de madeira, levou váriospedaços compridos e finos até um par de serrotes e começou a cortá-los emcomprimentos iguais. A madeira exalava um cheiro fresco de limpeza. Enquantoa mulher prendia tábuas curtas no alto de dois pedaços mais longos, Peterentendeu. Muletas. Ela estava fazendo um par de muletas. A faca que ele haviaroubado começou a pesar na coxa.Em poucos minutos, Vola tinha preparado os apoios no alto das muletas eprendido os suportes para as mãos. Por fim, mediu para ver se serviriam e cortoudois centímetros de cada uma.Em seguida, pegou um pneu velho no canto do celeiro. Foi até a bancada detrabalho e procurou alguma coisa. Peter sentiu o rosto arder quando ela se viroupara ele e perguntou:— Você pegou minha faca?A voz dela soava perigosa, como algo prestes a explodir e arrancar o telhadodo celeiro.Peter se sentiu tonto, e o coração disparou de novo. Ele tirou a faca do bolso ea estendeu a Vola.— Por quê?O menino engoliu em seco. As palavras tinham sumido.— Por quê?— Porque... Tá, porque fiquei com medo de você me matar.— Matar? — disse ela, olhando severamente para ele. — Só porque eu morono bosque sou assassina?Peter indicou com a cabeça a parede com ferramentas cortantes.— Minhas ferramentas? Tenho oito hectares de árvores para cuidar. E façoescultura em madeira. Você achou que fossem armas?Peter desviou o olhar, envergonhado.— Olhe para mim, garoto.Ele se virou de volta para a mulher.— Talvez você não esteja errado — disse Vola, olhando fundo nos olhos dele.— Talvez você esteja vendo alguma coisa. Talvez eu seja... — ela levantou asmãos devagar, juntou os dedos na frente do rosto de Peter e os abriu de repente— ... bum! Perigosa, assim... do nada!O menino se encolheu.— Não, me desculpe. Eu me enganei.Vola fez um sinal com a mão para que ele ficasse em silêncio, enquantobalançava a cabeça com tanto vigor que as penas e os ossos presos às trançasgiraram como se fossem um pequeno ciclone. Ela cortou quatro tiras deborracha do pneu e as enrolou no alto das muletas e nos apoios. Depois, prendeuesses pedaços com barbante, sem dizer nada. Por fim, estendeu as muletas.Peter posicionou uma embaixo de cada braço e desceu da bancada. Foi umalívio estar ereto e equilibrado, com o pé quebrado erguido no ar.— Não ponha o peso nas palmas das mãos. Estique o corpo, não se pendure.Apoie as muletas no chão e jogue o corpo para a frente.O menino fez menção de agradecer, mas Vola o interrompeu de novo:— No final dessa estradinha fica a rodovia. Vire à esquerda, andequatrocentos metros e você vai encontrar um posto de gasolina. De lá, você sevira.Depois de ajudá-lo a colocar a mochila nas costas, a mulher deu meia-volta,pegou um bloco de madeira e começou a tirar lascas como se ele não estivessemais ali.Peter experimentou dar um passo na direção da porta. Desequilibrou-se umpouco, mas não muito.— Isso foi um pulo — disse Vola, sem levantar o rosto. — Eu falei para jogaro corpo. Agora, saia daqui.Por um momento, Peter não se mexeu. Não sabia para onde ir, só sabia quenão voltaria para a casa do avô. Vola se virou e se inclinou na direção dele,juntou os dedos e os abriu bem junto ao rosto dele.— Anda logo, enquanto ainda está inteiro.


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