Matagal da amnésia

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Matagal da amnésia

Freya Richard, vinte e oito anos de idade, estuda educação física em uma universidade federal prestigiada.

O primeiro contato que eu e essa garota tivemos foi a cerca de seis meses através de um e-mail, ela dizia que sentia como se parte de seu passado tivesse sido apagado, além disso, sempre que tentava se recordar do que poderia ser este "espaço" em sua memória algumas imagens desconexas apareciam.

A senhora Richard decidiu procurar meu trabalho após buscar inúmeros profissionais da área psicológica e psiquiátrica. Sinceramente eu não a culpo, também ficaria temeroso de procurar um hipnólogo, ainda mais um com costumes esotéricos tão peculiares quanto os meus. Apenas para se ter noção, meu consultório possui inúmeros símbolos energéticos, suas origens são das mais distintas possíveis sendo: celta, islâmica, maia, grega e cristã apenas os mais comuns e fáceis de reconhecer.

A primeira vez que a garota veio ao meu consultório pude ver o nervosismo em seu rosto. Suas feições eram equivalentes a alguém que adentra uma caverna rústica rodeada de sombras aterrorizantes. Porém, depois que lhe ofereci um refrigerante de lata e a senha do wifi, a mesma viu que eu não era tão selvagem quanto ela pensava.

Marcamos três sessões de hipnose, sendo que o primeiro dia nenhum procedimento pôde ser executado. Ela me contara sua história de vida, desde quando era uma pequena fazendeira no interior do estado do Kansas, até quando suas lembranças começaram a falhar, três anos antes.

A primeira coincidência que pude perceber estava no momento que as anomalias se iniciaram, curiosamente estas batiam exatamente como o início do curso da senhora Richard. Quando eu mencionei tal fato a mesma levou a mão a testa e emitiu uma risada. Ela disse-me que foi aí que seus problemas começaram. A princípio imaginei que ela se recordara de algo marcante, um acontecimento singular que nos levasse a fonte das amnésias e, consequentemente, a sua cura. Mas ela apenas disse que depois que seu curso começou sua vida ficou extremamente agitada. Nas palavras dela: "De segunda a sexta o único momento que parava de se mover era quando dormia"

Pensando nisso, estabeleci uma estratégia de hipnose envolvendo o sono e a coloquei em prática na segunda sessão.

No dia em questão ela chegou bem mais tranquila, já conhecia o consultório por isso seu nervosismo se desfez. O lugar encontrava-se praticamente idêntico, os únicos itens diferentes eram uma poltrona confortável e duas pequenas crianças que quiseram passar o dia com o pai, ou seja, eu.

O procedimento se iniciou as três e trinta da tarde, eu orientei a paciente a sentar-se na poltrona e relaxar. O intuito era usar das técnicas de hipnose, iniciando pelo pre-talk e fazê-la alcançar um sono profundo. Tarefa essa que não foi nenhum pouco complexa, tendo em vista que ela dormia muito pouco e vivia exausta.

O que eu não imaginava era que, no sono guiado, ela apresentasse uma espécie de tranca mental, algo que certamente viera de um fator externo, um acontecimento marcante, uma espécie de trauma.

No sono guiado eu a conduzi a descrever tudo o que sua mente projetava diante de si, e no início ela o fizera tranquilamente. O sinais eram todos referentes a fazenda que crescera; uma árvore que ela costumava brincar e onde dera o primeiro beijo, o trator da família que ela aprendera usar sozinha, e um caminho de pedras que levaria até um lago.

E era no fim desse caminho que encontrava-se a tranca.

Um matagal denso que turvava todas as memórias posteriores.

Pedi que ela imaginasse algo que lhe desse segurança suficiente para continuar pelo caminho, inclusive sua resposta seria uma pista de qual o nível de perigo ela esperava enfrentar.

Suas escolhas foram: um facão, para abrir caminho entre as folhas, e o mais preocupante do itens, uma arma de fogo.

Pedi para que ela parasse, já presenciara situações semelhantes onde as pessoas guiadas se muniam de armas e sempre o perigo era maior do que ela conseguia enfrentar.

Mas diferente de todos que a antecederam, minhas ordens foram recusadas. Ela desvencilhou-se de meus comandos e seguiu sozinha pelo matagal da amnésia. Todavia, sua boca continuava a descrever seus passos.

De acordo com ela. cada vez que cortava o mato com seu facão uma imagem lhe surgia. Cada vez que amassava a folhagem com os pés, mais iluminado o caminho se tornava. As memórias eram dos primeiros dias que chegara à cidade.

As pesquisas de repúblicas, as primeiras amizades, a primeira reunião no bar.

E quando o ponto mais negro da mata se pôs a sua frente, ela avançou lentamente.

O dia do trote.

Ela ficara tão feliz com a faculdade que se permitiu participar daquele rito de entrada dos calouros. Sua boca descrevia como seu corpo se encontrava, disse que uma das sobrancelhas fora raspada e a pele pintada de inúmeras cores que nada queriam dizer. As características batiam com a situação, exceto a tontura que a mesma afirmava sentir.

Sua descrição ficou ainda mais clara, atirava em inúmeras figuras masculinas que se aproximavam, mas a cada tiro lançado, mais a tontura a abatia e comprometia sua mira. Eles lançavam cerveja sob seu corpo e em seguida arrancavam suas vestes como animais sedentos por sua carne.

Estalei os dedos e dei o comando de despertar. Eu já havia entendido tudo.

Seus olhos se abriram em sua boca respirou profundamente, quase como se tivesse emergido de uma piscina gelada. Seu telefone, que fora deixado sob minha mesa, tocou naquele instante. Eu o levei até sua dona que, ao ver a foto do amigo que lhe contatava, curvou-se e vomitou.

A sessão surtira efeito, suas memórias não mais estavam turvas. Freya ali sabia tudo o que fizera, mas mais que isso, reconhecera todos que fizeram dela, naquele dia de comemoração, um mero objeto. E aquele "amigo" era um deles.

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