O BECO

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 Um beco...
Um beco sujo com degraus de concreto mal conservado. Aquele lugar, que a muito já havia sido uma travessia suntuosa, hoje já não possuía nenhum glamour. Algumas portas existiam por sua extensão, por trás delas moradores singelos viviam suas vidas castigadas pela rotina maçante.
Mas ali, naquele beco com valetas, poeira e esporádicos ratos, existiam crianças. Crianças risonhas e agitadas que brincavam nas escadas. As meninas, todas bem vaidosas, costumavam trazer suas bonecas de casa e simular vidas melhores e divertidas com as amigas. Pensavam em ir ao shopping, comprar belas roupas e se divertir em um simples passeio.
Os garotos, mais desbravadores é muito menos criativos que as meninas, subiam e desciam procurando pedregulhos para forjar castelos. Eram tempos de férias o que faziam seus dias serem bem mais longos que o restante do ano, acordavam cedo e dormiam tarde da noite devido energia acumulada em seus pequenos corpos.
Mas os pais não estavam descansando. Todos eles, sem exceção, desciam diariamente o beco para trabalhar na cidade que ficava lá em baixo. Alguns voltavam mais cedo, outros mais tarde, e alguns nem sequer viam os filhos acordados devido ao expediente intenso, ou seja, os pequenos ficavam completamente sozinhos durante o dia. Mas eles não se sentiam abatidos, a solidão ali não tinha vez. Estavam sempre juntos, alguns em degraus mais acima, outros mais abaixo, mas sempre juntos.
Porém naquele dia, eles se sentiram sozinhos pela primeira vez.
O horário não fazia sentido para alguns, estes não sabiam ler relógio e também pouco importava. Mas os mais velhos, coisa de um ou dois anos de diferença, sabiam que algo de errado acontecia. Quando o fim da tarde chegava o sol se alinhava de tal forma que seus raios iluminavam os degraus do beco. Naquele horário alguns pais já deveriam ter chegado, mas nenhum adulto subiu as escadarias do beco, ao menos não até hora do pôr do sol.
Quando o céu se avermelhou e as nuvens noturnas começaram surgir, uma silhueta cambaleante despontou no começo da escada.
Seus passos eram desengonçados e lerdos ao subir, parecia embriagado ou algo do tipo.
As crianças mais velhas tinham a expressão de temor, já os mais inocentes, de curiosidade.
Ninguém sabia quem era aquele adulto, seu rosto não era visível pois ele andava com a luz incidindo em suas costas.
Uma criança chegou a perguntar se este era seu pai, mas a silhueta que se mostrava masculina, nada respondeu.
Quando se aproximou dos pequenos seu corpo caiu de joelhos, em seguida tombou com a face em um degrau quebrando alguns dentes de sua boca. As crianças mais inocentes se assustaram e correram para suas casas fechando janelas e porta, todos sabiam que se algum perigo surgisse deveriam se trancar em casa, mas um corajoso notou feridas no corpo do homem desconhecido e não correu.
Fios de sangue escorriam de sua pele e a roupa tinha sinais claros de sujeira. A criança moveu a jaqueta que o adulto usava e acabou por revelar um ferimento grave em seu pescoço do mesmo.

Uma menina notou que eram marcas de dentes e alertou o pequeno corajoso que se afastou no mesmo instante.

Logo em seguida o corpo do homem começou a reagir em movimentos espásmicos. Assustados todos se afastaram, segundos depois os ruídos começaram. Gemidos, estalos, grunhidos guturais; o corpo parecia reagir, até que os olhos palideceram e as juntas do voltaram a funcionar.
O homem estava erguido e traçava uma corrida direta pelo beco. Seus urros e tropeços faziam as crianças chorarem aterrorizadas dentro de seus lares. Exceto uma, esta havia ficado paralizada no alto da escada e era em direção a ela que o homem corria. Porém, o que a criança ouviu na sequência não foi o som do homem a agarrando e a atacando, mas sim o estrondo trovejante de um tiro.
O homem tombou à sua frente e quando jazia sem vida no chão, uma segunda silhueta apareceu contra a luz.
A figura era uma mulher de baixa estatura, pele clara e cabelos dourados em trança, trazia consigo um rifle nas mãos e um uniforme militar de elite sob o corpo.

— Comando FOX aqui é a major Amanda, acabei de derrubar mais um deles é...
A mulher parou a transmissão de rádio assim que viu a criança no alto da escada com a expressão estática, os olhos arregalados, e a respiração travada.

— Comando FOX encontrei um espécie tomando uma criança, qual a instrução?
A criança apenas chorou e suas lágrimas foram o suficiente para que as demais saíssem de suas casas. A mulher percebeu que sua suspeita não era verdadeira e que, não só aquela criança como todas as outras, não estavam possuídas ou infectadas pelo que quer que fosse.
— Ai meu deus... Solicito extração imediata, estou com um grupo de crianças! Repito, solicito extração imediata! — falou a mulher no rádio antes de correr em direção as crianças
Mesmo assustadas elas a rodearam, a face ríspida da garota jovem tornou-se amável o que ajudou as crianças a confiarem nela. Os pequenos faziam perguntas e choravam, nenhum ali tinha noção do que havia acontecido, apenas tinham certeza que tudo estava diferente e seus pais não estavam ali para dar segurança.

Em meio aos choros e perguntas de todos a mulher se abaixa e, com seus grande olhos que transmitiam paz, anunciou:

— Olha, está acontecendo algo sério. Nós vamos esperar aqui até podermos sair, está bem?
Aterrorizada por não terem visto seus pais elas acataram as ordens da mulher. A major apenas as colocou longe do corpo sem vida enquanto vigiava a entrada do beco. Seus olhos encaravam a parte de baixo da cidade por uma visão que as crianças não possuíam. Lá, uma cratera gigantesca com chamas azuladas em seu entorno podia ser vista, esta consumia a tudo e a todos próximos vagarosamente. Aqueles que entravam em contato e fugiam, logo se tornavam irracionais e perigosos; o trânsito parou, os hospitais lotaram e logo depois viraram um recanto dos monstros, a cidade estava irreversivelmente perdida.

Aquele beco, o mesmo que era luxuoso e se tornou desprezado, era a única coisa em ordem que havia sobrado em um raio de quilômetros.
— Maldita seja essa guerra química.
Falou a major esperando a extração do campo de batalha.

CONTOS: Histórias de universos em construçãoWhere stories live. Discover now