Universos na estante

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Universos na estante

Ela nunca se deu o trabalho de olhar sobre sua pequena tela, nada em seu entorno tinha mais importância que seu mundo virtual. Quando o dia finalmente chegou, descobriu da pior maneira o que é viver sem o carinho e amor de uma mãe.

— Maldito seja esse aparelho... — Sabrina lançou o celular de encontro a uma das vigas sem reboco da casa de sua mãe. O dispositivo espatifou-se liberando faíscas pelas frestas em um curto circuitos. — Por que assim mãe? Por que hoje?

Era aniversário de Sabrina, mas a mesma não tinha motivos para comemorar a maioridade adquirida. A garota sofria com a morte de sua mãe, esta perdera a vida em um acidente aéreo que deixou outras cento e cinco famílias e luto.

— Eu nunca prestei muita atenção em você, só nos falávamos por texto. Se eu soubesse... — As lágrimas escorriam enquanto os joelhos dobravam de encontro ao chão. — Deus! Eu quero minha mãe de volta!

Luzes apagadas, portas trancadas. Sem forças para ir para o próprio quarto a adolescente foi até a cama da mãe que nunca mais retornaria de viajem.

— Uma escritora... — Repousou a cabeça no travesseiro levando os olhos de encontro ao teto. — Foi assim que você viveu não foi? Queria que me dissesse por que tamanha devoção por colocar palavras em uma folha em branco. Nunca te entendi, mas também né? Eu nunca perguntei, jamais quis sua vida se misturando com a minha.

Sabrina se debulhava em lágrimas, um choro sincero e infantil de uma criança que deveria se tornar adulta naquela noite. Vizinhos a chamaram na porta, eles descobriram por meio do noticiário que sua mãe estava entre as vítimas. Mas ela não ligava para condolências de terceiros, queria apenas ficar sozinha com sua dor.

A noite chuvosa e fria parecia que jamais teria um fim, as memórias que possuía eram turvas e isso era o que mais a angustiava. Sua culpa a consumia por dentro; anos e anos de convivência e pouquíssimas momentos de felicidade.

"Imaginar um universo é fácil, difícil mesmo é aproveitar o que vivemos."

A frase que sua mãe repetia latejava em seu cérebro como se fosse uma cicatriz. O sono demorou e veio embalado de soluços chorosos, porém o descanso logo foi cortado por uma brisa gélida que atravessou o quarto e derrubou um dos livros da estante.

Olhos abertos, coração acelerado. Levantou-se.

— O que foi isso? — Enquanto caminhava pelo chão de madeira notou algo jogado. — Como isso veio parar aqui? — Apanhou o tomo de capa bege nas mãos, abriu na primeira página. Seus olhos deslizaram lentamente pelas palavras e enquanto o faziam, marejavam-se. — "Dedicado a minha filha e princesa, Sabrina"

A garota notou que aquela era uma das obras de sua mãe. Rapidamente buscou outro exemplar e novamente leu a dedicatória.

"Para minha razão de ser, Sabrina"

E o mesmo foi se repetindo um após o outro.

— Eu nunca li nada seu.

Rodeada por mais de trinta volumes diferentes, a jovem chorava.

— Tanto esforço para me homenagear e eu nunca retribuí. — A garota empilhou alguns volumes de uma série denominada por sua mãe de "A princesa Sabrina e mundo do caos" — Vou ler tudo o que você se dedicou a criar; cada obra e palavra, cada universo nessa estante representa você. — Ergueu-se fazendo as lágrimas rolarem pelas bochechas. — Mãe, sua vida toda foi dedicada a transmitir seus sonhos para outras mentes, mas está na hora de eu finalmente receber sua mensagem.

A garota sentou-se na cama com o primeiro volume da trilogia que carregava seu nome. A cada página virada, parágrafo iniciado e capítulo finalizado, mais seu coração se confortava, pois ela sabia que mesmo não retornando a vida sua mãe viveria para sempre em cada um dos universos em sua estante.

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ESTE CONTO FOI CRIADO PARA O CONCURSO LITERÁRIO SERGIO FARINA DE SÃO LEOPOLDO-RS

INFELIZMENTE ESTE NÃO FICO ENTRE OS VENCEDORES :(


CONTOS: Histórias de universos em construçãoTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang