Mil Guerras Psíquicas - Parte 1: Estranhos

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Aterrissaram bruscamente lado a lado a um córrego de água cinzenta, cercado por bancos de areia, um dos quais os ajudou a frear.

— Você está desculpada.

Ayat não respondeu. Trazia consigo um decantador molecular e purificou a água para reencher seus cantis.

Vomadar se lembrou do recipiente onde guardara os pombos e constatou, chateado, que apenas um dos filhotes sobrevivera a suas desventuras. Enterrou os outros filhotes, alimentou o sobrevivente e o recolocou na vasilha.

Apoiada em Erha, Ayat agora fechava os olhos para descansar. Evitando incomodá-la, Vomadar se agachou num arbusto próximo para observar a biota. Plantas amassadas indicavam a passagem recente de máquinas terrestres. Admirou-se ao encontrar, alguns metros adiante, um casal de hamsteres de pelagem dourada. Pensou em convidar Ayat para apreciarem juntos a inusitada presença de dois mamíferos sobreviventes no deserto, como eles.

Um dos hamsteres olhou para ele, enquanto o outro, agitado, corria em volta do primeiro.

— O que houve, bichinho? Nunca viu um símio tão grande? Mas o que é isso que você tem?

Notou uma ferida na parte interna da perna do primeiro hamster. Pelo estado de cicatrização, tinha pelo menos dois dias. Levantou-se de súbito e correu para Erha.

— Ayat, vamos embora, agora.

— O que houve?

Vomadar tomou sua mão e puxou para entrarem juntos no veículo.

— Vamos fugir daqui, Ayat. Eu não sei por que, mas as máquinas aqui não seguem o padrão do muiril.

***

Passado o córrego, o deserto se tornou mais arenoso e não raro circundaram dunas do tamanho de pequenos montes. Ayat retorcia o cabelo com os dedos. Vomadar segurava-se firme. Ambos mantinham os olhos bem abertos apesar dos sopros de areia que venciam suas viseiras improvisadas de pano. Notaram, à esquerda, no alto de uma das dunas mais afastadas, um vulto apoiado por uma espécie de lança alargada. Pouco se via dele devido à distância; parecia uma máquina diferente, como que se um lado, o que se apoiava com a lança, fosse menos expressivo que o outro.

Desviaram o curso, de modo a não chamar a atenção caso ele ainda não os tivesse visto. Espiaram mais uma vez o vulto e viram surgir, por detrás da duna, dois, três, cinco tanques de guerra leves, cada qual com duas fileiras de rodas cobertas de rastros com propulsores auxiliares de ar, próprios para navegação sobre a areia.

Ouviram o disparar do primeiro tanque, que zuniu na direção de onde estavam. Despedaçou um pedaço da terra ainda a muitos metros, o que não impediu o susto. Aceleraram por entre dunas, para despistá-los, quando as asas de Erha se prenderam num par delas.

— Não! Ayat, tira isso!

— Estou tentando, por que você não ajuda?!

Ayat acabou removendo as lâminas sozinha. Tão logo soltou a segunda, novos tanques surgiram à sua frente, também pelo alto, enquanto os anteriores se aproximavam. Mais disparos se seguiram e os estrondos das explosões pareciam soar do ponto onde estavam. A cada vez que Ayat girava a cabeça para procurar um novo possível rumo, deparava com o vulto, sobre outra duna, na mesma posição.

Manobrou o veículo no quanto conseguiu por entre áreas fora do raio de alcance dos tanques, ignorando os zumbidos dos tiros e os soluços contidos de Vomadar, até alcançar um pequeno vale de dunas. Não havia pensado com palavras, mas pedira a seu deus, em sentimento, que lhe mostrasse aquela saída. Quando se permitia invadir pelo frêmito do sucesso, um novo tanque, de porte maior que os demais, azul cintilante, apareceu flutuando por detrás de uma das dunas que compunha o vale, bem à sua frente. Ayat freou Erha, tomou a mão de Vomadar e esperou o fim.

O canhão de disparo do tanque azul se ergueu e uma chama avermelhada, acompanhada de um rugido grotesco, voou através dele como um cometa. Aniquilou o alvo. Ayat e Vomadar tiraram as mãos dos ouvidos e giraram a cabeça a tempo de ver um dos tanques que os cercava estilhaçado, suas placas de metal ainda voando para todos os lados. Não foi o único. Os disparos do grande tanque azul continuaram - rugia, atirava e um por um caíram novos tanques inimigos até que os remanescentes se retiraram disciplinadamente. O vulto, que observou o espetáculo de cima, se virou e partiu ao lado de seu exército.

***

Em meio às ruínas das máquinas de guerra, envoltos na nuvem de areia que ascendeu das feridas da terra, permaneceram apenas Erha, Ayat, Vomadar e o veículo que salvou a todos eles. Suas passagens laterais abriram, projetando as duas portas para frente, pendidas do corpo principal do veículo somente por um grande cabo de aço. Vomadar segurou firme as mãos de Ayat, ao mesmo tempo por susto e companheirismo. Enrijeceram, ansiosos. Os olhos de Ayat brilhavam. Três tripulantes ocultos sob trajes de batalha saíram da nave e checaram a área, em alerta contra possível ataque surpresa dos tanques fugitivos. Em seguida, um deles analisou Erha e outro acenou aos dois em sinal de paz. Vomadar soltou as mãos de Ayat, envergonhado. O estranho retirou o capacete e revelou sua identidade.

— Cide!

— Sarhka!

Ostentava seu típico sorriso paternal. Enquanto Ayat o fitava, fascinada, Vomadar, com o rosto sério, foi direto:

— Vocês têm um veículo de guerra. Todos esses anos, e vocês têm um veículo de guerra.

Leon e Nadine se juntaram ao grupo. Apenas Tanya permaneceu na sala de comando.

— Vomadar, eu considero uma pena termos escondido a Turquesa dos demais pesquisadores mais jovens - disse Cide, - mas não podíamos arriscar. Assim como vocês conseguiram fugir, ainda nem sabemos como, outros poderiam tentar roubar o veículo para procurar parentes perdidos. Esta é a nossa única nave apta a missões externas e é a primeira vez que a usamos.

— Se é tão arriscado usar ela, por que você veio pessoalmente?

— Eu estou velho, Vomadar. Quantos anos mais você acha que eu vou viver sem acesso a muiril? Acha que tenho alguma coisa a perder?

Nadine interviu:

— Ei, o que que está acontecendo aqui? Você acha que você pode exigir alguma coisa, Pombal? Nós não temos nem lei para o crime de vocês, a gente vai ter que improvisar um julgamento. Entrem na nave agora, nós vamos levar vocês de volta.

— Não — disse Ayat. — Nós temos um objetivo e vocês podem ajudar.

— Ayat, não... — disse Vomadar, puxando-a pelo braço, mas Ayat balançou os ombros e se soltou.

— Nós sabemos como derrotar o Basilisco.

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