O mural das décadas

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A tarde é alta, e o sol arde vermelho em um céu que parece sangrar em boas-vindas à fria noite que se aproxima. Pela calçada abarrotada eu sigo, invisível em meio aos passantes ocupados e preocupados com suas próprias divagações, achando graça de como tudo isso sempre foi assim. Sigo o rumo do vento guiado por meus pés que já sabem de cor esse caminho, o mesmo caminho que eu já fizera tantas vezes antes: o caminho para a casa dela. O caminho para o sorriso dela.

A caminhada ansiosa, com batimentos que seguem a ordem caótica do mundo em minha volta, se faz findar quando paro diante da casa de muro baixo, afastada do movimento incansável da cidade. É uma moradia pintada de branco, as paredes descascadas em desleixo, o telhado em meia-água exibindo seu marrom mesclado aos raios escarlate que o céu ainda vomita em minha direção. Apenas um portãozinho de ferro me separa do caminho de tijolos que segue até a porta da casa, de onde eu já consigo sentir o cheiro dela, exalando pelos ares como um convite, como uma relutante e esperada entrega.

O gemido das dobradiças entrega a minha chegada, e os metros que se seguem até a porta são percorridos em aflição: parecem durar toda uma eternidade dentro dos poucos segundos que comportam. O vento que me levara até ali cessa e silencia, e eu apenas posso confiar nela. Teria que estar lá, como sempre era, como sempre costumava fazer.

Meus dedos magros e vacilantes acalmam-se quando giro a maçaneta e vejo a porta sendo aberta. Ela, afinal, já sabia da minha chegada e havia deixado sua casa e sua vida destrancadas para mim. Entro, cuidando para não sonorizar minha presença, e vejo ao lado da porta um grande cabide de madeira com seus braços estendidos. Repito, assim, o ritual absoluto que sucedia minha chegada: removo da cabeça o capuz que escondia minha face, desnudo-me de meu sobretudo preto e o deixo sustentado pelo móvel que parecia, assim como ela, esperar-me ansiosamente. Meus cabelos escuros e encaracolados caem sobre meus ombros, e somente o vestido branco e fino que uso passa a cobrir meu corpo esguio.

Atravesso a casa, o perfume do hálito dela espalhado pelo ar como neblina. Pelos cômodos apertados pouco havia mudado. As poltronas são as mesmas, as cortinas ainda são cor de gema, os quadros nas paredes ainda exibem as paisagens que ela por tanto tempo fotografara. Percebo, enfim, que eu mesma também em nada havia mudado.

No corredorzinho que separa a sala do quarto, somente silêncio. Vejo a cozinha pequena um pouco à frente, de onde um aroma suave de chá de ervas se mistura ao cheiro erógeno da carne dela, das covas dela. Suspiro.

No final do corredor, a porta do quarto está entreaberta como um chamado suave, como uma vontade reprimida de quem quer, mas não consegue dizer um sim. Me aproximo, me esgueiro pela fresta e vejo a cortina dançando no ritmo da brisa. A cama, onde eu já tantas vezes desejara deitar, está no mesmo lugar em que sempre esteve, e acima dela está quem sempre encontro ao chegar.

Lá está ela.

Entre os lençóis alvos, o corpo de pele escura se espreguiça. Vejo sua barriga, seus ombros e parte de seus seios deslizando pela superfície macia. Ela tem os olhos fechados, os cabelos volumosos jogados para um só lado; nos lábios um sorriso contido revela que ela sabe que não está mais sozinha. As mãos de unhas bem feitas percorrem a cama, alcançam o abdômen e por ele viajam em uma visita demorada. É o ritual, o mesmo ritual de sempre que ela cria para me fazer perder a hora, para me fazer perder o lugar.

Sento-me, assim, na poltrona marrom que sempre está lá a esperar por mim. Minhas mãos descansam sobre os braços do móvel, enquanto em meu peito, em meus seios, em minha pele interior, fervilha desejo. Ela, exibida e desejada, se mostra. Sabe bem no fundo que é a minha pausa, o meu descanso, o meu pôr do sol vermelho. É ela que me faz desacreditar do espelho, espelho que me olho e vejo-me de pele pálida, de olhos sem íris completamente preenchidos de negro em contraste com o branco de meus dentes.

Ao meu redor e ao redor dela, também refletidos no espelho que me mostra como sou e não como ela me vê, muitos quadros e muitas fotografias. Ela está em todas elas, diferente em cada uma, sorrindo em incontáveis estilos, em incontáveis lugares e em incontáveis eras. Vejo o rosto dela como uma bela mulher dos anos vinte, de olhos e boca delineados de negro. Vejo seu corpo usando saia de bolinhas e lenço no pescoço como uma jovem dos anos cinquenta. Vejo seus cabelos rebeldes, seus quadris cobertos por uma calça de cintura alta como uma vivente dos anos oitenta. Diferentes nuances, mas o mesmo sorriso em todas as épocas que vivera, em todas as épocas pelas quais eu a deixei viver.

Ela, agora olhando-me com olhos de lince, o corte de cabelo de uma moderna mulher do século vinte e um emoldurando o rosto de expressões robustas, me chama. Me chama para o mundo que existe naqueles lençóis castos, naquela pele vasta. Eu me levanto, sentindo nos meus pés o vento que deveria carregá-la dali, e apenas assisto.

Estendo as mãos para ela, que somente me olha com os dentes apertando a carne negra da boca que eu tanto desejo também morder. Estende também uma das mãos em minha direção, mas sabe que apenas joga: não pode tocar-me, não pode sequer aproximar-se de mim.

Sabe que nada sei, e que nessa tarde eu seguirei novamente só.

Retraio-me, retornando para a cadeira, a cortina esvoaçando como aviso de que a noite se aproxima. Me olha e sabe que eu acho graça por isso ser sempre assim. Se toca e me esnoba, e em um gozo silencioso diz: "nada de teu nesse lugar".

Ela então sorri daquele jeito, e eu, que já perdi a hora e o lugar, aceito.

Ofegante depois de nossa tarde de amor, ela dorme. Eu, também energizada pelo prazer e pelo desejo imortal, apenas permito que ela novamente fique.

Levanto-me, os mamilos marcando meu fino vestido, e refaço o mesmo trajeto de antes, ainda embriagada pelo perfume dela misturado ao cheiro do chá. Na sala, meu sobretudo me espera nos braços do cabide, o mesmo do qual sempre me despeço quando chega o momento de partir. Visto-me com as cores que me escravizam; cubro novamente meu rosto pálido com o capuz que me esconde; de minhas vestes, tiro novamente minha pequena foice de lâmina prateada. Abro a porta, olho para trás e deixo-a mais uma vez sozinha com um beijo que ela jamais de mim receberá.

Nadade meu nesse lugar.b=ể'L 0c0K 

OITO | Uma coletânea de contosOnde histórias criam vida. Descubra agora