Somnium

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— O primeiro ato é acordar numa imensa escuridão, sabe como é a sensação de abrir os olhos e parecer que eles continuam fechados? De volta ao ventre da mãe talvez seja a melhor aproximação. Você sente-se leve e como se não existisse gravidade, a noção de espaço é distorcida, a grande culpa é do manto negro que te rodeia, é impossível dizer se é infinito ou trata-se apenas de um cômodo cúbico preto de três metros. Depois disto vem um dos maiores questionamentos da humanidade, se eu morrer, o que acontece a seguir? Para mim está muito claro o que acontece, aos poucos o manto negro foi se dissolvendo aos meus pés e criando formas, não havia luz e nem túneis, eu estava no inferno, mas este era diferente de todos aqueles retratados em livros e histórias, não tinha pessoas ardendo em fogo e nem criaturas vermelhas com chifres pontiagudos e tridentes. Era um quarto, que com o tempo aprendi ser uma prisão, era inclusive decorado e mobiliado, a sensação que fica é de que o inferno não é tão ruim assim. Não havia pessoas para me recepcionar ou torturar se for o caso, então é assim? Essa é minha casa pós morte?

— Acordar num lugar que você nunca esteve e não saber o que aconteceu é uma das sensações mais desconfortáveis que um ser humano pode passar, passei por isso alguma vezes em minha vida, confesso que mais do que gostaria, mas uma delas foi a pior de todas, despertar num lugar que não é na terra, visitar um plano onde você não pode mais voltar ou sair. Tornar-se só, o ser humano tem a incrível habilidade de se degradar mentalmente quando gasta longos períodos de tempo consigo mesmo, o contato social é mais importante do que ele acredita ser.

— Ao atravessar para o outro lado, encontrei-me em uma sala mobiliada com um gosto exótico, era comum o uso de estátuas de deuses animais, das mais diversas religiões para decoração. Quando se entra em um ambiente assim, a tendência das pessoas é olhar pela janela, esta pequena fresta pode lhe dizer onde você está e te mostrar que o mundo exterior ainda está lá caso precise. Aqui elas ficam a uma altura impossível de se alcançar, as paredes são altas, e as janelas em barras de metal grossa onde não se pode chegar. Após algumas horas, ou talvez sejam dias não sei, você consegue saber o local de todas as coisas, e depois de mais algum tempo passar a quebrar as que forem possíveis.

— Você tem que chegar muito próximo e não morrer, a volta foi reconfortante, porém, jamais volta-se do mesmo jeito que partiu. Ouvi uma voz, na verdade, conheci um cara que me ajudou neste processo, disse-me que eu poderia voltar se quisesse. Acho que a voz é um elemento crucial e comum em todas as experiências que li, ouvi ou presenciei. O nome, eles te chamam sempre pelo seu nome, isso significa que sabem quem você é, e o que faz ali. Mas o que mais me intriga é o que é aquele lugar? Será que todos irão para o seu cômodo no fim das contas? Meu sonho e objetivo em vida é descobrir isso, entretanto, o preço para tal pode custar muito caro, tentar reproduzir uma experiência desta pode fazer com que não volte mais para contar o que descobriu. Mas eu preciso tentar de alguma forma, você me entende não é Thalita?

A porção grande de batatas fritas acabara de chegar, recheadas com muito queijo, era ideal para matar a fome que eu estava. Eu conheci Thalita numa das sessões do grupo para pessoas que passaram pelas chamadas Experiências de Quase Morte ou EQM's, ela era a única que acreditava na minha versão de céu e inferno, todas as pessoas que conheci lá tiveram a mesma visão equivocada do pós vida.

Primeiro você sente uma liberdade e paz interior absoluta, vê seu corpo quando se projeta flutuando para fora dele, e no instante seguinte está num túnel, nossa, sempre tem que ter o túnel, ele é escuro nas suas laterais e no fim há uma forte luz, e quando você o cruza pode ver algum ente querido e uma voz o chama de volta para a vida. Não tenho nada contra as pessoas que tiveram esta experiência, apenas acredito numa outra forma de morrer.

— Deliciosa essa batata, não é? — Comentei devorando umas cinco ou seis de uma vez.

— Muito boa, o que você pretende fazer para voltar lá? — Perguntou Thalita pegando apenas uma batata e comendo em dando duas mordidas para termina-la.

O Homem e a CaixaWhere stories live. Discover now