O Trem

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Cheguei pontual às 21:00 h e lá estava ela me esperando, estava sentindo-me um pouco cansado, não sabia o motivo, às vezes me pego fadigado depois de uma soneca, quando o contrário deveria ser verdade, recuperar as energias depois de dormir um pouco.

Ambos entramos num dos vagões do trem e procurando nossos assentos para aproveitarmos da melhor maneira a viagem. As acomodações eram simples, porém, bem aconchegantes, a disposição dos bancos era em grupos um de frente para o outro, fechados como cabines, separado de dois em dois.

O meu número e de Julia era o nove. Ao encontrarmos o lugar, já estava-se acomodado na poltrona em frente ao nosso número um homem senhor trajando um terno marrom bem amassado, usando um chapéu posicionado a frente da face, parecia bem cansado como se não dormisse há dias, sentado numa posição ereta, as pernas levemente afastadas, exalava um cheiro de putrefação, as mãos estavam transpirando de tal forma que molhara a calça, era visível no seu olhar por baixo do chapéu o desespero, carregava sobre o colo segurando com as duas mãos uma pequena caixa de madeira, nela havia alguns símbolos parecidos com hieróglifos e uma pequena fechadura na lateral. Balançava insistente a perna direita, sem muito falar, apenas acenei de forma discreta com a cabeça e me sentei junto com Julia no banco.

Nenhuma palavra foi dita por ele o tempo todo em que estava no mesmo cubículo que nós, me transmitia desconfiança e medo. Com tantas sensações diferentes passando por mim ao mesmo tempo, comecei a passar mal, não sei se pelo movimento do trem, pela posição do banco, já que, estávamos viajando de costas, isto me deixava um pouco enjoado. O estomago embrulhando e eu começava a sentir as contrações para expelir tudo que havia comido tempos antes de chegar na ferrovia.

— Daniel, você está bem? Parece um pouco pálido e está suando — Perguntou Júlia passando um lenço em minha testa para secar.

— Acredito que esteja enjoando, mas não me recordo de ter comido nada estragado e nem em exagero.

— Venha, troque de lugar comigo, fique um pouco perto da janela.

Coloquei num reflexo a mão na boca ao levantar para me certificar que nada iria sair, olhei rápido para o homem com a caixa antes de me acomodar perto da janela, ela estava meio aberta e o ar fresco de uma noite sem estrelas e da lua escondida entre as nuvens tocou meu rosto, a sensação era refrescante, o cheiro da mata úmida do local em que estávamos passando me fez lembrar de Riverside, era um regresso, eu estava voltando para onde tudo começou.

Não tenho certeza do que estou fazendo, mesmo que seja por um final de semana apenas, quero que as histórias do passado fiquem no passado, só que também quero acabar com essa sensação de não saber quem sou. Já se passara muito tempo e tudo que aconteceu não deve me abalar mais.

— Daniel Larsson — Chamou o homem com a caixa em tom baixo e rouco, a voz soou vazia e sem vida, não movimentou nenhum músculo, continuou na mesma posição com o olhar escondido atrás do chapéu.

Meu coração acelerou naquele instante, ergui as sobrancelhas assustado, como de costume faço ao ser surpreendido, como ele sabia meu outro nome? Julia havia me chamado por Daniel, mas como sabe que meu sobrenome é Larsson, o que queria comigo?

Sem esperar uma resposta minha, ele seguiu dizendo com a mesma entonação robótica e sem expressões corporais, mantinha a caixa apertada entre as mãos.

— Daniel Larsson, crescido em Riverside e detentor de um trauma jamais esquecido. Por que se esconde atrás desta máscara de sanidade? Você sabe o que viu e fez, o frio no estômago que sentiu ao ver tudo aquilo acontecendo, não acha que tudo mudará só pelo fato de ter fugido e voltado tempos depois? Lembra-se de uma daquelas noites? Numa sexta do dia trinta e um de dezembro, a virada do ano na pequena cidadezinha era linda, todas as pessoas na rua apostas para olharem a enxurrada de fogos nos céus, barracas, festividades, felicidade e você...

Uma breve pausa foi feita por ele, deu algumas tossidas secas e rápidas, acariciou a caixa passando os dedos por cima dos símbolos e prosseguiu dizendo:

— Você encolhido numa das vielas sem iluminação perto de um cruzamento numa vila, todo arranhado, pingando de suor, ofegante e com sangue esparramado em toda a roupa. Confuso, não sabia quem era, da onde viera e para onde iria. Por muito tempo continuei ao seu lado, vendo onde tudo aquilo iria terminar. Aquele dali para frente seria você Daniel Larsson.

Aquilo não poderia estar acontecendo, como aquele homem falava com tanta propriedade sobre a minha vida e quem eu sou, o que a Julia pensaria de mim depois de ouvir estas coisas? A aparência do homem mudara repentinamente, o olhar de medo e desespero é notável ao vê-lo firme apertando a caixa, o ardor da transpiração aliado ao cheiro de roupas velhas, do estado de uma pessoa que não sabe mais o que é ser humano é de lacrimejar os olhos. O enjoo aumentou, e acho que não irei conseguir me manter bem a viagem inteira, na iminência de colocar tudo para fora, o homem fala mais algumas palavras, no mesmo instante em que sinto as mãos quentes de Julia pousar sobre minha testa e coxa.

— Eu juro por minha pobre alma, que não queria chegar a este ponto, mas não há saída, estou jogado aos leões famintos, sem armas, exposto e me agarrando ao último fio de esperança que resta.

Enquanto falava ele batia com o dedo indicador na fechadura da caixa, foi possível contar o número de vezes que o fez, um total de nove, olhei para o lindo, mesmo que assustado rosto de Julia, lá fora a mata continuava densa, bela e agradável e senti no mesmo segundo o ruído do freio da locomotiva sendo acionado bruscamente, pessoas começaram a gritar e por fim o estrondoso impacto do trem.

O Homem e a CaixaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora