Capítulo 3

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No momento em que o Alessandro parou de passar as páginas, reparo que já havia visto aquelas contas em outro lugar. Comento o fato com o agente. Ele também acha um pouco estranho o fato da Michele estar com um livro cheio de números durante um ensaio de música. Por que ela o levaria ao invés de um de música? O que iria fazer depois do ensaio? Talvez ela fosse para a biblioteca. Mesmo que tivesse algum dever de matemática para fazer, não encontrei nenhum caderno em seus pertences. Será que era apenas uma anotação ou algo do tipo?
Ficamos no quarto de Michele à procura de provas, mas nada está irregular no cômodo. Seguimos para a cozinha. Alessandro ainda segura o livro.
— Senhorita Kétlin? — Ele fala de modo educado. Ela nos olha por um momento e depois para o livro nas mãos do Alessandro — Você poderia nos dizer algo sobre o comportamento de Michele antes de falecer?
Kétlin nos oferece um café que aceitamos gentilmente. Fomos para a sala.
— Bom, Michele nunca foi uma garota do tipo grosseira ou agressiva. — Kétlin nos indica os sofás. Sentamos. —  Mas ela mudou.
— Mudou? — pergunto.
— Sim. — Suspira e aponta para o livro. — Tenho certeza que foi pouco depois de pegarmos esse livro na biblioteca. — Alessandro descansa o exemplar em cima da mesa de centro da sala. Ela o pega e passa a olhá-lo com atenção. — Não sei ao certo o que é que tem nele, mas Michele ficou obsessiva — diz ela, encarando o chão.
Isso é a coisa mais estranha que já ouvi. Sei que existem pessoas que têm obsessão por alguns bens materiais ou até por pessoas, mas por que ter obsessão por um livro que nem era dela? Pergunto-me o que há nele para ser tão especial.
— Por que há uma parte com contas? — volto a perguntar.
Kétlin olha para mim e se levanta. Pega alguns papéis de dentro de um caderno e volta para onde estava.
— Bom, pelo que a Chel me contou, todas essas contas que vocês viram são uma música. Se vocês olharem não tem o nome da pessoa que fez — informa, olhando atentamente para as folhas nas mãos. — Têm umas páginas aqui com algumas das contas que a Chel fez para conseguir codificar as outras que estão no livro. No começo, eu tentava ajudar, mas depois de algum tempo desisti.
— E por que você desistiu? — pergunta Alessandro.
— Porque eu tive sensações estranhas quando tentava tocar algumas notas — diz ela ainda procurando entre as folhas. — Eu não consegui codificar toda a música. Apenas umas três ou quatro partes. E ao tentar tocar, senti coisas estranhas. Sensações estranhas.
— Que tipo de sensação? — pergunto curiosa. Ela acha a folha que procurava e nos entrega.
Alessandro pega.
— Tristeza, felicidade e o que mais me assustou foi a impressão de que havia algo me observando. — Ela dá uma pequena pausa. — A sensação não foi embora, então eu comecei a frequentar mais a igreja. Me senti muito melhor ao ir. Lembro que no primeiro dia em que fui não tive mais a sensação. Na verdade, eu melhorei muito.
— Como vocês fizeram para descobrir as notas da música? — pergunta Alessandro ao passar algumas das folhas para mim.
Nas folhas tinham rabiscos e contas que me lembro de ter aprendido no ensino fundamental e médio, mas estavam de formas diferentes e misturadas. Nenhuma com um resultado específico.
— No livro, vocês podem ver que não tem contas inteiras — diz ela, abrindo a capa e mostrando para nós. Nas primeiras linhas há contas, depois vemos numerações inteiras. — Chel e eu chegamos à conclusão de que isso é uma progressão matemática de sons. Se observarem bem, perceberá que têm mais cálculos de física do que as que aprendemos em matemática. Chel descobriu qual tipo precisaria fazer e eu a ajudei com a física.
Kétlin pega umas das folhas que coloco na mesa e nos mostra os números.
— Você continuou a ajudá-la depois que foi à igreja? — Alessandro questiona.
— Não. Como disse antes, ela mudou. Passou a não falar muito comigo e a sair também. Ela não parou de falar totalmente, mas toda vez em que eu tocava no assunto, Chel me respondia com ignorância e ia para o quarto.
— Como vocês acharam o livro? — pergunto apresada, ela hesita.
— Como sabem, este é o último ano de ambas na Academia. — Suspira. — Agora é o meu. Todos os alunos do último ano têm um teste final. Não sei quem inventou de fazer isso, mas sempre deu muito certo apesar do trabalho. Então todos os alunos do último ano devem compor uma música para que quando a gente sair já ter uma peça nossa para apresentar. Chel e eu fomos à biblioteca procurar inspiração e achamos o livro. Normalmente não preciso de inspiração, mas queria apoiar minha amiga. — Ela torna a olhar para o chão e seus olhos marejam. — Se soubesse o que ia acontecer, eu não a teria apoiado.
— Não foi sua culpa — falo gentilmente.
Alessandro fica quieto, sem saber o que dizer. Tenho certeza de que não é muito sentimental. Kétlin respira fundo.
— Desculpe, vocês têm mais perguntas?
— Na verdade, sim. Posso levar essas anotações comigo?
— Sim, de qualquer maneira, eu iria jogar fora mesmo.
Seguro o livro junto com as anotações da Kétlin. Alessandro e eu saímos do apartamento da jovem. O agente pega seu carro e vai fazer algumas pesquisas. Ele avisa também que iria passar na delegacia para ter uma conversa com o Denis e o meu superior, senhor Devin Clark.
Depois de um tempo, eu volto para casa. Julia está em frente ao piano tocando ou, ao menos, tentando. Já faz um tempo que ela se esforça para decorar uma música.
— Chegou cedo, Licie! — diz ela, animada. — Cadê o seu parceiro gato?
Julia e a vontade de me casar para se livrar de mim.
— O meu parceiro Alessandro está trabalhando — aviso, tentando soar séria.
Ela ri.
— Se você diz.
— Vou almoçar e sair.


Após o almoço, vou à Academia de Artes de Nova York. O livro está comigo. Encontro a diretora. Sento-me em frente à mesa dela e a observo se acomodar também. Trocamos cumprimentos.
— Então, em que posso ajudar? — pergunta ela.
— Gostaria de saber qual foi a professora ou o responsável por este título? — Coloco o livro em cima da escrivaninha do escritório e empurro para que ela veja.
A mulher me encara e passa a olhar para o livro. Ela arregala os olhos, averigua o título e ao abrir a capa, se assusta.
— Onde você o conseguiu? — pergunta a diretora, séria.
— O livro foi encontrado por mim e pelo agente Alessandro no quarto da falecida Michele.
— Mas...
— Ela pegou na biblioteca — corto-a.
— Então... — A diretora deu uma pausa. — Não era para ele existir. Queimamos o primeiro faz algum tempo quando quase houve outra morte. Quando queimamos, tínhamos certeza de que não existia outro.
O quê? Então quer dizer que temos um sobrevivente?
— Poderia me dizer quem montou o livro? — pergunto.
— O nome dela é Emilia Roth. Ela já está aposentada há uns três anos. Não sei como está, pois não há vejo faz um tempo. Acredito que, como detetive, você conseguirá encontrá-la.



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