Diante de um predador

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No dia seguinte, as sete da manhã, na escola, Argemiro, sentado em sua carteira na sala de aula, pensava sobre os acontecimentos do dia anterior. Tentava colocar os pensamentos em ordem. Pensou na serpente e na índiazinha solitária, relembrou palavra por palavra daquele velho índio.

"Rudá"...Tinha impressão que já ouviu esse nome antes...

Debruçado em sua carteira com o rosto escondido entre os braços, a aula havia começado a dez minutos e todos olhavam curiosos para ele enquanto a professora lhe dava uma bronca. Mas Argemiro só voltou de seus pensamentos quando o colega atrás lhe deu um tapa forte no pescoço. Todos os alunos riram enquanto a professora repreendia a atitude do menino e Argemiro o encarava furioso.

No recreio, continuava na mesma posição, mas agora ele era o único na sala. Levantou a cabeça quando Vicentino, que era da mesma série mas estudava na sala ao lado, lhe chamou.

- Até agora não entendi nada do que aconteceu ontem lá naquela mata. - Disse Vicentino.

- Eu também não. Mas pra mim alguém pregou uma peça em nós.

- Eu só sei que não volto lá nunca mais.

- Já eu, quero voltar lá agora mesmo.

- Esqueça essa história, Gemiro. Vamos arrumar confusão não.

- Ninguém brinca comigo daquele jeito não.

- Quem fez aquilo nem está mais lá.

- Quero encontrar aquele índio velho. E quer saber? Vai ser agora!

- Vai la não rapaz! - Vicentino olha assustado para Argemiro, vendo-o arrumar a mochila com seriedade nos olhos.

- Você vem?

- Vou nada!

Argemiro se levantou da cadeira, e com um semblante ainda mais sério no rosto sai da sala. Após o recreio, quando todos já estavam na sala de aula, sentado em sua carteira com um livro de história, caderno e caneta sob a mesa, Vicentino via seu amigo pular o muro da escola. Queria ter ido, mas não era tão corajoso como ele.

As três horas da tarde, depois de fazer os deveres de casa e as tarefas da escola, Vicentino chegava na porta da cozinha de dona Arminda, mãe de Argemiro. Perguntou por ele após cumprimenta-la e foi direto até a árvore de amoras atrás da casa. Esperou ele descer da árvore com um tapoer fundo cheio de amoras.

- E então Gemiro, o que deu la?

- Nem te conto, Vicentino. Mas no fim não deu em nada não.

- Conta ai, quero saber.

- Não vale apena ouvir. Ninguém acreditaria. - Ofereceu um punhado de amoras para seu amigo que o aceitou.

- Então por que todo esse espanto?

- Eu só não encontrei nada lá.

- Conta logo, Gemiro!

- Olha, juro pra você, nunca vi coisa mais estranha. To com os cabelos em pé até agora.

- Você viu alguma coisa lá?

- Coisas estranhas acontecem naquela mata. Vicentino, nem eu consigo acreditar no que eu ví. Eu fui naquele mesmo riacho em que fomos ontem, decidi não ficar ali por causa daquela cobra. Caminhei pelos mesmos lados que aquele índio velho surgiu. Mas ai no meio do caminho ouvi um barulho estranho, andei mais um pouco e vi um bicho gigantesco derrubando uma árvore. Sorte minha que estava de costas pra mim porque se não já era... levei um susto tão grande que não tive reação nenhuma, apenas fiquei ali parado. Só depois voltei a mim e me escondi atrás de uma árvore. Sai correndo de lá.

- Que bicho era?

- Olha, eu não sei bem o que vi. Primeiro pensei que era uma onça, mas depois que vi suas patas fiquei muito confuso. Era muito grande e era estranho o modo que o bicho cavucava a terra.

Mais tarde, após o jantar, enquanto dona Arminda lavava as louças e arrumava a cozinha, Joaquim assistia seu jornal de noticias. Argemiro viera sentar-se no outro sofá, prestou atenção na matéria do jornal que passava na TV. No outro lado da cidade, onde seus tios moravam, havia algo tenebroso, uma lenda local, tradicional. Dizia o jornal que todas as manhãs, uma velha maltrapilha de uma perna só apoiada numa bengala, vinha sempre batendo de porta em porta pedindo por fumo. Nas entrevistas com os moradores eles afirmavam que realmente essa estranha e misteriosa velha surgia todas as manhãs, mas que sempre desaparecia durante o dia, logo a noite, via-se atravessando as vilas por onde a velha tenha andado, um pássaro que não se sabe por onde e de onde vem. " É nessas horas que fechamos portas e janelas e deixamos um saco com tabaco do lado de fora que é levado pela ave.". Dizia um dos moradores, e o jornalista logo complementa a matéria dizendo que "Caso a oferenda não fosse oferecida, a ave soltava um grito arrepiante como um prenúncio de desgraças, o grito é sempre ouvido como Matin..." , mas Argemiro já não prestava mais atenção. Observava seu pai que assistia atentamente.

- Pai...

Joaquim olha para o filho após ser chamado pela segunda vez.

- Oi meu filho?

- Lembra quando o senhor me contava lendas folclóricas?

- Sim, lembro.

- O senhor um dia me falou sobre Ruda...

- Ruda?

- Disse que os índios tinham conhecimento sobre deuses.

- Quando os primeiros padres chegaram as índias ocidentais, eles observaram os índios afim de poderem "Catequizá-los". Ruda era o deus do amor.

- Sim pai, mas eu queria fazer uma pergunta. O que Ruda tem a ver com cobras que comem índios?

- O amor, é a pureza do ser. Ruda velava pelo amor de cada um, mas quando uma alma era impura, ele a castigava. A relação de Ruda com a tal serpente é a punição imposta às jovens impuras de corpo, ou seja, crianças ou adolescentes que foram violentadas ou que perderam a virgindade. Os maiores relatos já registrados sobre essa lenda aconteceu no lago Juá.

- Entendi... uma ultima pergunta, o senhor sabe o nome da onça que tem metade do corpo e patas de anta?

Folclore Em Atividade - Livro 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora