Capítulo 1

133 4 0
                                    

Eu estava vagando no vazio e não tinha mais consciência do que eu era, se eu era alguma coisa.

Talvez eu fosse parte do nada, talvez eu fosse nada.

Depois do que pareceu uma eternidade, comecei a ter uma leve sensação de meu corpo.

Espera aí, eu tinha um corpo? Parece que sim.

Era como se eu estivesse começando a existir só que não sabia bem o que significava tudo isso.

Eu não lembrava de nada antes do vazio e agora tudo estava nascendo dentro de mim: sensações físicas, emoções, pensamentos. As coisas iam tomando forma e nome na minha mente pouco a pouco, entretanto não havia memórias de minha própria existência.

Comecei a sentir um leve formigamento dos pés a cabeça, uma tênue claridade atingia minhas pálpebras e com um maior esforço do que achei necessário, abri lentamente os olhos e a claridade ofuscante penetrou por minhas retinas. Pisquei várias vezes até poder me acostumar com o brilho. 

Olhei para um teto branco. Eu estava deitada no que parecia ser uma cama. Vaguei o olhar pelos arredores, mas não conseguia ver as coisas com muita precisão, parecia um quarto, não um quarto apenas. Eu estava num hospital. Simplesmente sabia. Mas o que eu fazia em um hospital? Parece que ia ficar sem saber o porquê disso, pois eu não fazia idéia.

De repente alguém entrou no meu campo de visão, uma mulher, baixinha, rechonchuda, morena com bochechas rosadas e um olhar surpreso quando me viu. Uma enfermeira, percebi por causa da roupa toda branca. Começou a falar comigo, só que meus ouvidos estavam um pouco tampados, como se estivesse debaixo d’água. Pouco a pouco o som de sua voz se tornou claro.

- Você está me ouvindo? Como se sente? Consegue falar?

Eu tentei mas parece que minha língua estava emperrada.

- Caso esteja entendendo e não consiga falar pisque uma vez para sim e duas pra não. Consegue me compreender?

Pisquei uma vez.

- Muito bem. Isso é ótimo. Você sente alguma dor?

Pisquei duas vezes.

- Bom. Lembra-se de alguma coisa? Sabe por que está num hospital?

Pisquei duas vezes.

- Certo. Parece que você caiu da escada de sua casa. Teve traumatismo craniano e ficou quinze dias em coma.

Fiquei agitada com essa informação e a enfermeira percebeu e tentou me acalmar. Tentei levantar mas me sentia fraca demais. Finalmente minhas cordas vocais começaram a cobrar vida, tentei balbuciar alguma coisa, entretanto minha boca e garganta seca me impediram.

Muito eficiente a enfermeira pegou um copo ao lado da cama e me ajudou a beber. Ah, aquele simples líquido parecia um maná dos deuses.

- Beba devagar. Isso, depois te dou mais um pouco.

Com um pouco da sede aplacada, tentei fazer minhas cordas vocais funcionarem outra vez.

- Não me lembro de nada até acordar há pouco – sussurrei - Você tem certeza que eu caí e estou em coma por todo esse tempo?

- Absoluta. Eu estava aqui quando trouxeram você de ambulância. Para te explicar melhor o que aconteceu, vou chamar o médico de plantão. Aguarde só um momento.

A enfermeira saiu em seguida, sem que eu pudesse formular qualquer pensamento. Logo retornou com um homem pouco mais alto que ela, também acima do peso, cabelos brancos e ralos, óculos emoldurando um rosto sisudo.

- Eu sou o doutor Simão. Não sou o médico responsável pelo seu caso, mas já li sua ficha. Você sente alguma dor, algum desconforto?

Enquanto ele falava, observava meus olhos com uma lanterninha, verificou outros reflexos motores, pulsação e batimentos cardíacos. Depois fez algumas anotações numa prancheta.

- Não sinto nenhuma dor, só me sinto um pouco entorpecida e desorientada.

- É natural. Seu acidente não deixou nenhum outro trauma físico além do traumatismo craniano, nenhuma fratura exteriorizada ou interna, somente alguns hematomas nos braços e pernas. A batida na sua cabeça causou uma fratura no crânio e edema cerebral, que é um acúmulo de líquido numa determinada parte do cérebro. Hoje faz quinze dias desde que deu entrada neste hospital e esteve em coma por todo esse tempo, devido ao acúmulo de líquido. Vou solicitar uma nova tomografia para verificar se há vestígios do edema e fratura.

- Eu não me lembro desse acidente, aliás, eu não me lembro de absolutamente nada antes de acordar aqui.

- A amnésia é uma decorrência natural após um traumatismo craniano. Essa amnésia pode ser temporária.

- Mas pode ser permanente... – sussurrei amedrontada diante desta possibilidade.

- Sim, mas tente não pensar nisso, pois agitação não seria bom no seu caso. O mais comum é que logo você se lembre das coisas.

Dizendo isso ele saiu rapidamente. A enfermeira ainda estava checando os aparelhos em que eu estava ligada e também as medicações da IV (intravenosa).

- Agora que você acordou vai poder ir para um quarto ao invés de ficar aqui na UTI. Lá será mais tranqüilo e sua família poderá estar o tempo todo ao seu lado.

Família? Eu tinha uma família? Por que não consigo me lembrar de ninguém?

Vendo meu estado a enfermeira tentou me acalmar:

- O doutor Simão disse que era comum a falta de lembranças. Não fique nervosa, logo isso vai mudar você verá. Eu não sei muito bem sobre sua família, mas nos meus turnos eu pude ver um homem quase da sua idade, que disse ser seu marido e um casal mais velho que disseram ser seus sogros. Olhe pelo lado bom, você tem uma família que se importa contigo. Agora pare de se preocupar e procure descansar.

A sonolência já estava me dominando, mesmo que minha cabeça estivesse a toda com as “novas” informações. Logo o sono me reivindicou.

Duas VidasWhere stories live. Discover now