Prólogo

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"Abra os olhos".

Tive a sensação de ouvir minha própria ditando aquela ordem. Não era um sussurro em meu ouvido, soava mais como um megafone escondido em algum canto dentro do meu cérebro. Reconheci imediatamente o mesmo tom autoritário que eu às vezes usava para me repreender em qualquer situação – "Como sempre atrasada", ou "nem você leria esse lixo de matéria", às vezes me punindo com um seco "eu avisei!".

Era só abrir os olhos. Ora, eu havia feito isso infinitas vezes ao longo dos meus vinte e seis anos de vida. Não poderia ser tão difícil. Não deveria ser tão difícil. Costumava, bem pelo outro lado, ser automático.

Não naquele momento.

Se eu ao menos soubesse... Se alguém tivesse feito o favor de me dar uma prévia, menor que fosse, do que me esperava do outro lado, talvez eu tivesse me esforçado menos. Talvez tivesse desobedecido minha própria ordem e permanecido às cegas – curtindo aquela indisposição, que a princípio me pareceu agradável. A confusão preguiçosa, o conforto que era não saber o porvir.

A iluminação amarelada esgueirou-se para dentro das minhas pálpebras trêmulas, um clarão atroz para meus olhos "fotossensíveis" – era a palavra que o oftalmologista havia usado para descrever minha intolerância à claridade ao papai, quando eu era ainda muito pequena para entender.

Forcei meu rosto para a direita, mas ainda era muito difícil ver qualquer coisa que não fossem os pontos luminosos, consequência do contato direto com à luz.

Custou tempo e esforço até que eu conseguisse identificar a penteadeira ao lado da cama, encostada à parede. Ela não se apresentava pra mim com nitidez, mas um borrão pouco delineado. O espelho oval estava voltado em minha direção, e meu reflexo turvo me pareceu débil e assombroso.

A confusão atenuou-se. A indisposição, antes muito parecida com a preguiça dos domingos de manhã, se tornou apavorante. Meu corpo pesava muito mais do que eu parecia suportar, e eu falhei em cada uma das tentativas de erguer minha cabeça, meus impulsos me deixando zonza e exausta.

Pensei – e torci – que talvez não estivesse acordada.

Se parecia muito com um daqueles pesadelos em que tentamos fugir de alguma coisa qualquer, mas subitamente perdemos todos os movimentos, junto à força para gritar por socorro.

O eco de um tilintar metálico me roubou a atenção. Eu não tinha certeza se havia sido externo ou interno, como se houvessem correntes se esbarrando dentro de mim. Que sensação engraçada e desesperadora ao mesmo tempo. Meu coração disparou, e sua ligeireza parecia estranha se comparada à sensação de câmera lenta que eu vivenciava.

Num movimento letárgico, deitei o rosto para o outro lado. Arfei, sem qualquer energia. Meu rosto escorria. Lágrimas, suor, eu não sabia bem. Talvez os dois.

Observei o biombo que escondia apenas parcialmente o vaso sanitário no canto do cômodo. Quis ir até lá, principalmente porque me sentia nauseada. De olhos apenas meio fechados, fantasiei meus pés alcançando o assoalho, encurtando o caminho entre eu e aquele banheiro improvisado, caindo em meus joelhos e botando minha alma pra fora. Despertei do devaneio engasgada com meu próprio vômito, infelizmente ainda na cama.

O tilintar novamente. Era externo, com certeza. Meus olhos sonolentos se guiaram pelo ruído que arrepiava minha mandíbula e os arredores atrás da orelha – como unhas arranhando um quadro negro, ou o arrastar da ponta do garfo no fundo de uma panela.

Caminhei com o olhar por meu braço, e naquele momento eu tinha a sensação de que ele já não pertencia totalmente a mim. Não conseguia movê-lo, embora pudesse senti-lo formigar intensamente.

Quando meu pulso finalmente entrou em meu campo de visão, ele parecia muito mais distante do que realmente estava – parcialmente pendurado para fora da cama, envolto em um bracelete de ferro pesado, que tinha sua outra extremidade presa à um corrimão parafusado à parede.

Eu soube, naquele momento, presa dentro do meu corpo e também fora dele, que minha vida se dividiria em duas partes:

Antes e depois de abrir os olhos naquele dia. 

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