1

140 14 14
                                    

Eu sempre fui uma criança quieta, mas isso não significava que pensasse pouco. Do contrário, era curioso. Queria respostas, mas só me traziam cada vez mais perguntas. Talvez por isso até hoje a expressão de meu rosto seja idêntica a um sinal de interrogação.

- Por que o papai bate na mamãe? - Minha irmã Harriet me perguntou depois de termos corrido para longe de casa.

- Eu não sei.

E eu realmente não sabia. Ouvia as românticas declarações que meu pai fazia à mamãe quando estava sóbrio e contente por arrumar trabalho. Talvez ele só estivesse demonstrando seu amor de uma forma diferente daquela vez... Embora não fosse a primeira vez que aquilo acontecesse.

Estava tudo quieto, e já era noite quando ele chegou bêbado em casa. Já sabíamos o que estava por vir. Eu e mamãe escondemos Harriet atrás do sofá para que ela não visse aquilo. Como sempre ele foi para cima da mamãe, mas naquele dia eu não deixei estar. Recordo que entrei na frente dela para protegê-la mas não fui forte o suficiente. Eu era só um menino. Uma mão pesada me empurrou e eu bati a cabeça, ficando tonto.

- Corra, John, e leve Harry com você. - Mamãe gritou desesperada e eu estava atordoado demais para fazer o contrário. Mas eu não entendia por quê sempre tinha de fugir.

Bom, eu também não sabia exatamente o que significava amor, ou afeto. Tinha vaga ideia disso quando mamãe me abraçava com força antes de dormir, ou quando Harriet brincava comigo e fazia tudo parecer mais simples.

A propósito, Harry - era assim que a chamávamos por ser tão pequenininha - era uma criança tão curiosa quanto eu; era de sangue, como dizem. Nessa época ela estava com cinco anos, e eu com doze. Ela tinha a coragem de questionar em voz alta as dúvidas que eu reprimia.

Em resumo, éramos de uma família pobre e morávamos em uma casa longe, muito longe da cidade. Quase não havia emprego por aquelas bandas, mas pelo que me lembro nosso pai era carpinteiro e às vezes passava dias sem dar sinal de vida. Todo mundo sabia que ele estava trabalhando e que, se não fosse por isso, morreríamos de fome. É claro que mamãe também trabalhava, mas não dava para contar com isso. Às vezes ela não conseguia sequer levantar da cama. Tinha uma doença que nem eu e nem Harry sabíamos o que era porque não nos contavam. Logo, ninguém ousava questionar quando papai aparecia após três dias longe de casa. Ele trazia comida, e isso era tudo.

Um dia ele nos trouxe chocolate e ficamos tão felizes! A minha felicidade durou pouco porque logo percebi que a barra, que a princípio parecia imensa, teria de ser dividida em três pedaços. Harry e mamãe comeram os seus e eu guardei o meu no bolso, porque sabia que uma das duas iria querer mais. A vencedora da noite foi mamãe, que aparentava ficar doente de novo.  Cheguei perto de sua cama e dei o chocolate a ela. Ganhei um beijo na testa e um afago rápido nos cabelos, seguido de um abraço. Ela nunca me bateu.

Com o tempo eu descobri que aquilo era amor.

as memórias de john watson Onde histórias criam vida. Descubra agora