VII

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Lobì e Nivlek retornam para o abrigo. Nvlek desejava muito vomitar cada centímetro de seu intestino boca afora, mas esforçava-se para digerir aquele fígado macilento e ensanguentado. Se Lobì visse por detrás da pelagem do seu rosto, veria sua pele verde de tanto enjoo. Mas não era necessário tanto pra ver Nivlek se segurando pra não vomitar, bastaria ver os espasmos que Nivlek sofria a cada três ou quatro passos.

-Segura aí, raposo. Vou preparar uma canja com essa harpia e você vai melhorar logo logo. Se canja de galinha serve pra quase tudo, canja de harpia deve ser uma quase panaceia.

-Nunca... Mais... Quero ver fígado na minha frente... Nem de brincadeira!- disse, tentando conter o vômito. Um arroto quase o faz vomitar, mas se conteve.

-Kkkkkkk, tá, da próxima vez vamos cozinhá-lo. Você só comeu ele cru porque algumas propriedades acabam sendo destruídas no calor. Eu mesmo prefiro aguentar e comê-lo cru. Já tô tão acostumado que agora pra mim é como comer um pedaço de geléia.

-Geléia????- Nivlek leva a pata na boca. -Pára de querer me fazer vomitar!!!- Mais um arroto.

-Tá bom, não tá mais aqui quem falou, ok?- disse gargalhando. -Você deu muita sorte. Faz tempo que não via um harpia nessas bandas. Sobe primeiro. Se não aguentar eu te pego.

-Tá... Aff.

Nivlek sobe a escada de corda, a tontura comendo sua percepção de tal maneira que quase o fez cair.

-Se concentra naquilo que você tem certeza. Tipo a escada.

-Como assim?

-Continue subindo.

-Acho que não vou conseguir...

Nivlek olha pra cima na esperança de dar de cara com Lobì novamente. Mas ele estava ainda no chão e Nivlek viu que ainda faltavam poucos degraus. Mesmo com o mundo ao seu redor rodando loucamente, subiu o restante da escada, arrastando-se para o local onde ele estava deitado antes, perto da fogueira quase apagando.

Lobì sobe com a caça e o sangue ainda na gamela com toda a facilidade. Apesar de alguns insetos ainda ameaçarem de pousar na carne da harpia, Lobi fez questão de colocar tudo dentro da panela, inclusive o sangue.

-Vou buscar água. Consegue aguentar?

-Eu vou viver...

Lobì pega um colmo grande de bambu e corre para a cachoeira. Nivlek vira o rosto para ver Lobì descer a escada, mas ao invés disso, Lobì salta do abrigo até o chão de areia, rolando em seguida para absorver o impacto. Ao chegar no rio, Lobì pega o colmo e o enche até a boca, fechando com uma rolha feita com um bambu menor.

Lobì volta correndo para o abrigo. Nivlek acha que ele ia parar e puxar a escada, mas Lobì não se deteve.Com apenas dois passos altos na parede, Lobì alcança a pata na borda do abrigo e se alça em um impulso no mesmo instante, saltando por cima de um Nivlek debilitado, aterrisando perto da fogueira.

-Quer um pouco?- disse enquanto despejava a água na panela.

-Como você fez isso?

-O quê? Parkour?

-É.

-Eu dava umas aulinhas básicas antes dessa coisa toda estourar. Nunca te falei?

-Não...

-Beba um pouco.- Lobì aproxima o bambu da boca de Nivlek. Foi uma verdadeira satisfação beber aqueles goles. -Daqui a pouco a canja está pronta.- disse se virando para a panela e despejando o sangue da harpia lá dentro. Lobì pega algumas mechas de casca de árvore desfiada e coloca nas brasas, assoprando até pegarem fogo. Depois de alimentar o fogo com alguns gravetos e pequenas toras partidas, Lobì se agacha na frente de Nivlek, colocando uma pata na sua testa.

-Não está com febre. Mostra a língua. Blaaaaah...

-Blaaaaah...- Nivlek coloca a língua pra fora. Lobì puxa a bochecha de Nivlek pra baixo.

-Tá voltando a cor, o que significa que era pressão baixa. Faz tempo que você não come algo substancioso, não é?

-Só o que sobrou das cidades e uma ou outra batata cozida que sobreviveu... Você tá parecendo um médico.

-A gente aprende umas coisinhas nas aulas de anatomia. Lembra que fiz Biologia antes?

-Metido...

Riram bastante. Lobì coloca o caldo fervente com alguns pedaços de carne em uma pequena gamela e o dá a Nivlek enquanto o ajuda a se recostar na parede de rocha sólida.

-Não tem sal, isso é óbvio. Mas pelo menos te faz recobrar as forças.

-Beleza...- disse enquanto soprava a canja. -Ei isso tá bom! Pena que não existe mais sal...

-Pois é, né? Mas de resto dá pra engolir. Ah, já ia esquecendo!

-O quê?

Lobì aponta para Nivlek. -Você até agora ficou sem nada. Esqueci sua roupa lá na árvore, vou lá lavá-la e já volto.- disse enquanto saltava do abrigo. Nivlek olha pra si, de pelo descoberto. Nem havia se dado conta de que ainda estava sem nada. O mais inacreditável era que Lobì parecia não se importar com isso. Era algo tão raro de se ver que Nivlek se viu com certo receio de que Lobì tivesse terceiras intenções com ele.

Quando Lobì retornou, Nivlek resolve arriscar.

-Lobì...

-Sim?

-Posso te perguntar uma coisa?

Lobì faz uma cara pensativa meio teatral. -Hum... Nadamos peludos na cachoeira, acabo de lavar sua roupa, caçamos e dissecamos uma harpia... É, pode me perguntar o que quiser.

-Palhaço...- Nivlek solta um riso.

-Ah, antes que eu me esqueça. Foi um belo tiro.

-O que dei na harpia? Eu nem matei ela, e quase perdemos ela se não fosse você...

-Você disse que era um alvo pequeno demais pra você e você acertou a garra dela.- Lobì o lembrou. -Ao meu ver, falta muito pouco pra ficar impossível de você errar.

-Sério?

-Sério.- Lobì sorri. -Mas voltando ao assunto, qual a sua pergunta mesmo?

-É que... Você já...?

-Já?

-Você já... Se deitou com alguém?- Nivlek ficou vermelho de vergonha. Por um momento, ficou torcendo para que Lobì também fosse daltônico ou que não visse através de sua pelagem -Desculpa...

Lobí o olha fixamente, mas não aguenta. Começa a gargalhar alto e gostoso.

-Qual é a graça?- Nivlek pergunta meio sem jeito.

-KKKKKKKKKK, Ai, raposo, isto não é uma histórinha pornô! Fica tranquilo. Como eu disse, não tem nada em você que me interesse. KKKKKKKKKK

-Desculpa.- Nivlek começa a rir da própria falta de inocência.

-Tudo bem. Mas não, nunca me deitei com ninguém, se é essa sua real dúvida. Tá melhor agora?

-Bem melhor e... Lobì! Tá ouvindo isso?

Lobì estranha por um segundo, até ouvir um zumbido muito fraco.

-Helicóptero?- Nivlek pergunta para Lobì. O zumbido cada vez mais alto.

-Parece que... Sim!!!

Feixes de luz ofuscante iluminam o local. Um enorme helicóptero militar aterrissa no banco de areia e uma loba um pouco maior que Nivlek desce da cabine.

-Sargento Ookami, sei que você está aí. Apresente-se!

Lobì salta do abrigo e se apresenta com uma continência.

-Sargento Ookami se apresentando, capitã!

-Descansar!- Ambos estavam perfeitamente retos. -É bom vê-lo de novo, Lobì!

-Também é um prazer revê-la, Kira.

DuplicattaWhere stories live. Discover now