Os dois caminham vagarosamente pelas ruas de Pinheiros e voltam a conversar:

— Padre, desde que vi aquela foto, não parei de pensar de onde conhecia aquele rapaz e acabei por lembrar: eu o vi certa noite numa academia de boxe que fica ali na rua de cima. Afinal, quem é ele?

— Ele era o meu filho — responde o padre sem hesitar.

— Como assim, era o seu filho?

— "Era", porque ele suicidou-se. Há vinte anos, engravidei uma menor de idade no Piauí, e depois de uma confusão, ela nos abandonou, e sem saber o que fazer sozinho com uma criança, além de dar explicações para os meus superiores da Santa Igreja, resolvi abandoná-lo... Eu sou o pior dos pecadores. Abandonei meu próprio filho quando ainda era um bebê e não tive tempo para ajudá-lo quando mais precisava. Sou o único culpado do seu suicídio.

— Não fale isso, padre, você não pode ter sido o culpado desta tragédia.

— Você diz isso porque não me conhece. Tornei-me uma pessoa fria e na época que libertei o demônio do inferno, ele enfeitiçou-me de tal maneira que acabei perdendo toda a sensibilidade pelo ser humano. Fui contra a ideologia da Igreja, profanei túmulos para alcançar o sucesso. Libertei um dos cinco príncipes do inferno. Pequei inúmeras vezes e até cheguei a matar... — o padre engasga, põe a mão no peito e acaba sentando num banco de um ponto de ônibus.

— Não fique assim e pare de falar essas coisas. Você encheu a cara e vai acabar tendo um enfarte. Vamos, eu lhe ajudo. Venha para a minha casa, lá você poderá tomar um café forte, banhar-se e descansar até amanhã.

Duas figuras cambaleantes caminham na noite paulistana: o jovem franzino que se esforça para aguentar o peso exorbitante do seu colega bêbado que luta em dar um passo seguido do outro.

E com muito sacrifício, cumprem o seu trajeto.

Manhã. Casa de Allan.

Bezequiel acorda com enxaqueca e fica perdido por alguns minutos imaginando como fora parar naquela casa, mesmo assim, puxa um isqueiro e um cigarro do bolso interno da batina, acende e traga profundamente, para logo em seguida, soltar anéis de fumaça. Incomodado, Allan acorda, se levanta e ainda sonolento, explica o ocorrido da noite anterior. Ambos resolvem tomar café, e aos poucos, o padre se recorda das revelações comprometedoras das quais disse na noite anterior. E mesmo envergonhado, não retira uma palavra do que dissera, e agora foi a sua vez de ouvir os problemas e as lamentações do jovem, algo que já sabia por partes nas suas confissões.

A conversa perdurou por mais de duas horas, até Bezequiel precisar sair para resolver assuntos pessoais e, no portão da casa, o padre leva um choque ao ver um altar vazio ao lado da porta de entrada e a cor desbotada das paredes que em outrora foram amarelas.

— Vocês tinham a imagem de algum santo neste altar? — pergunta o padre espantado.

— Sim, tínhamos Nossa Senhora Aparecida, mas joguei fora todas as imagens de santos da casa. Sabe como é, deixei de acreditar nessas coisas já faz muito tempo. Mas, por que pergunta?

— Em que ano você nasceu mesmo?

— No final de mil novecentos e noventa e dois. Mas, afinal, o que está acontecendo?

— Não sei, não sei, tenho que pensar... Os seus pais foram os únicos donos desta casa?

— Não, a casa é alugada e isso já faz vários anos.

— Bom, depois a gente conversa, tenho que ir para resolver um assunto muito importante.

Sem dar mais explicações, Bezequiel sai às pressas, mas para outro destino, a academia Heróis do Ring. Lá, facilmente subornando um dos funcionários, ele procura pelos dados pessoais de Anderson, pois o que soube nas suas confissões, foi muito vago. Sabia que Anderson tinha morado na mesma casa onde ele abandonou o bebê, mas segundo os registros encontrados, ele nascera em 1988 e morou naquela casa até novembro de 1991, se mudando com a sua família para uma travessa da Rua Cardeal Arcoverde, descartando todas as possibilidades de ser o seu filho. E nas conversas anteriores com Allan, descobriu que o seu irmão tinha dezessete anos. A única possibilidade que sobrou era o próprio Allan, pois segundo ele, nascera em 1992. Era certamente o seu filho, e por algum motivo, os seus pais nunca disseram que ele fora encontrado na porta de sua casa.

As coisas mudaram, e Bezequiel começou a enxergar uma luz no fim do túnel. O seu filho estava vivo, surgindo novas esperanças em tentar consertar o passado. Mas existia um grande obstáculo, Asmodeus, que tramou tudo isso, pois sendo um ser provavelmente onisciente, seria impossível não saber que Anderson não era o seu filho.

Bezequiel sabe que precisa colocar as coisas nos eixos, custe o que custar. O seu próximo destino é a sua sala secreta na igreja. Ele precisa verificar algo importante no livro de Cipriano: como quebrar o pacto com o demônio e mandá-lo de volta para o inferno. Algo que ele já sabia, pois já tinha lido sobre isso, mas precisava certificar-se para nada dar errado.

Crossroads - Quando os destinos se cruzamWhere stories live. Discover now