SEBASTIANA

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5h30.

Bezequiel corre descontroladamente pela mata, pois precisava chegar logo na casa do velho Geremias. O seu plano era levar Sebastiana consigo, numa fuga até a Bahia. Os pés doíam, mas tentava não pensar na dor. As manchas de suor já eram visíveis em sua roupa, e a fadiga tentava derrubá-lo a todo instante, até notar estar próximo da casa. Passou pelo cemitério e lembrou-se da besteira que fez no dia anterior. E com cautela, mas ainda ofegante, passou a caminhar fora da trilha, até avistar, ao longe, Sebastiana na janela do seu quarto. O velho, sentado em sua cadeira de rodas, estava na varanda. Não avistou Antônio, nem seus irmãos mais novos. Caminhou, até a casa, sem causar ruídos. Segurou a respiração ao passar vagarosamente pelo velho cego, que parecia meditar. Sebastiana, comendo seriguela, o viu, ficou surpresa, mas atendeu ao seu pedido de silêncio. O padre, sussurrando no ouvido da garota, pediu para ela arrumar rapidamente as suas coisas, pois a levaria dali.

Em cinco minutos, os dois corriam rumo a rodoviária, com mochila e malas pela estrada de terra, mas algo poderia atrapalhar os seus planos: Antônio, que consertava uma porteira na beira da estrada, avistou os dois. Largou os seus afazeres e surpreso, caminhou em direção a eles. Sebastiana, para não causar atritos com o irmão, pegou um atalho. Ela iria esperar Bezequiel na rodoviária. E enquanto sumia na pequena trilha, o gigante negro caminhava enfurecido, marchando como um soldado rumo à batalha, deixando mais uma vez o padre trêmulo, ao ver que ele carregava em uma de suas mãos o seu facão de estimação. Só que desta vez não era para cortar mato ou matar cobras, mas sim, para fatiar um homem que tentava fugir com a sua irmã mais nova. E mesmo ainda estando longe, o jovem fazia sinal com as mãos pedindo calma, em vão, pois Antônio acelerava o passo deixando cada vez mais nítido o seu olhar de ódio. Bezequiel, sem muitas opções, retirou a mochila das costas, abriu o zíper e pegou às pressas o seu canivete utilizado apenas para descascar laranjas. Aquele pequeno objeto metálico seria a sua única arma contra uma enfurecida máquina humana. E quando Antônio finalmente se aproximou e levantou o seu poderoso braço para desferir o golpe fatal com o facão no pescoço de sua vítima, o padre usou toda a sua força e golpeou, com o seu canivete, o coração do seu oponente, que largou a sua pesada arma deixando-a cair, acertando de raspão a sua lâmina na pálpebra do olho esquerdo do seu agressor, que por pouco, não o cegou.

Bezequiel pecou mais uma vez ao ver que Antônio caiu e morreu logo em seguida, mas era a sua vida ou a dele. E apesar de tudo, sentiu-se aliviado só em pensar que poderia ter sido decapitado.

Mas para concluir o trabalho, arrastou o morto para fora da estrada. Jogou o seu canivete bem longe. E mesmo com a pálpebra ferida, correu de encontro ao seu amor, que jamais poderia descobrir que ele fora o assassino do seu irmão.

Rodoviária.

Bezequiel avistou Sebastiana na rodoviária, mas antes, foi ao banheiro se lavar, e no espelho viu o estrago que Antônio fez em sua pálpebra; algo que o deixaria marcado pelo resto de sua vida e sempre que olhasse a sua face refletida, lembraria do assassinato. Tentou se concentrar: pegou um rolo de papel higiênico, destacou um pedaço e o pressionou contra a ferida. Olhou-se mais uma vez no espelho e já sabia a desculpa que daria para a sua amada. E foi isso o que fez logo em seguida:

— Sebastiana, meu amor, encontrei você — Bezequiel tenta esconder o nervosismo.

— Mãe de Deus, Bezequiel, o que aconteceu com o seu olho?

— Logo que você saiu, conversei com o seu irmão e fui atrás de você. Acabei pegando um caminho errado, embrenhei-me na mata e feri minha pálpebra num espinho.

— Deus... E meu irmão, o que disse quando ficou sabendo que eu irei embora com você?

— Expliquei que estávamos apaixonados, apesar do pouco tempo que nos conhecemos, e que eu queria dar uma vida melhor para você. Ele acabou aceitando a situação — Bezequiel muda de assunto rapidamente. — Vamos comprar as passagens?

E assim os dois viajaram até a Bahia. Alugaram uma casa em Salvador, e permaneceram felizes por alguns dias, até Sebastiana dar uma notícia bombástica: estava grávida. Bezequiel sabia que a Igreja jamais aceitaria esta situação. Estar com Sebastiana já era grave, ter um filho, mais grave ainda. Se quisesse retornar para São Paulo e seguir o seu caminho, teria que pensar num bom plano, mas não abandonaria a sua esposa gestante, mas sim, a esconderia, pelo menos até encontrar um plano melhor.

O jovem padre acabou permanecendo com Sebastiana na cidade, até o final da sua gestação. Tiveram um filho, e o chamaram de George.

Tudo parecia tranquilo, até o momento que as economias de Bezequiel chegaram ao fim. E para sustentar a sua família, ele montou uma barraca para vender pastel. E as coisas iam bem, já tinha vários clientes, mas algo desequilibrou a harmonia, dando uma virada drástica em sua vida: Sebastiana entrou em contato com a sua família para dar notícias sobre o seu paradeiro e saber se o seu pai e irmãos estavam bem, mas acabou descobrindo que Antônio fora assassinado no dia em que fugiu de casa e, mesmo ainda inexperiente para os assuntos da vida, ela assimilou tudo e concluiu que o assassino do seu irmão era o homem com o qual dormia todos os dias, o pai do seu filho

Sebastiana enlouqueceu. Quebrou as vidraças, e todos os copos e pratos da casa. Esbofeteou o rosto de Bezequiel inúmeras vezes, até não aguentar mais. Ele não reagiu e apenas pediu perdão. Chorou quando viu a esposa arrumando as malas.

Ela abandonou Bezequiel e o pequeno George.

E enquanto via, pela janela, a esposa ao longe caminhando na estrada, ouvia repetidamente as gargalhadas do demônio.

Mesmo não o vendo, Asmodeus sempre esteve por perto, desde o dia da sua libertação.

O que lhe restava era fugir, voltar para São Paulo e tentar reconstruir a sua vida como padre. Rezaria para Sebastiana não o denunciar, e mesmo que fizesse, dificilmente a polícia encontraria provas, além de que não teve testemunhas oculares.

Agora, o pequeno George poderia atrapalhar os seus planos. Mas quando chegasse em São Paulo, ele pensaria melhor no que faria para resolver essa situação.

E foi isso o que ele fez em seu segundo dia, no bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo: Bezequiel saiu de madrugada com o pequeno George numa sacola de feira. Ninguém poderia vê-lo. Caminhou pelo bairro até encontrar uma rua tranquila, e parou em frente a uma casa amarela com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, num altar próximo à porta. Olhou para os lados, não viu ninguém. Abriu a sacola e notou dois pequenos olhos o contemplando. Deixou a criança enrolada num cobertor no degrau da varanda, e foi embora, sem olhar para trás.

Crossroads - Quando os destinos se cruzamOnde as histórias ganham vida. Descobre agora