Noite de Reis

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─ Você tem duas mãos e dois pés, vá lá e pegue. ─ foi tudo o que ela disse antes de retornar à sua leitura.

─ O Duque de Alguma Coisa não paga o seu salário, sra. Dolittle. ─ expliquei.

─ Nem você. Então pare de perturbar e vá pegar o que precisa, antes que eu perca a paciência. ─ Ela sacudiu a mão acima do livro, meio que me mandando cair fora.

Se fosse meu pai a teria feito desgrudar o traseiro da cadeira e ir pegar o livro, afinal a sra. Dolittle era apenas uma subordinada. Mas preferi ignorar e fazer o que ela disse. Não estava com o menor ânimo para discutir sobre o que quer que fosse. Minha mãe ligara pela manhã com a desculpa de que queria ouvir minha voz, e aquilo me deixou preocupado. Da última vez que ela me disse essas palavras, acabou tendo uma recaída e enchendo a cara de uísque.
Assim que ela desligou, liguei para Edwina, nossa empregada, e pedi que ficasse de olho. Contudo, não dava para ficar tranquilo, não quando a imagem da minha mãe estatelada no chão do quarto permanecia tão viva.

Meu pai prometeu que não voltaria a se repetir, que cuidaria dela. Acontece que desde que retornamos a Madison Place ele vinha esquecendo-se de cumprir sua promessa.

A mamãe não estava feliz e, inevitavelmente, sua infelicidade respingava em mim. Talvez as coisas melhorassem se voltássemos para a Suíça. Fomos felizes lá, pelo menos por um tempo, antes dela começar a beber e, posteriormente, se entupir de antidepressivos.

Avancei pelo corredor estreito, examinando as estantes de madeira, as centenas de autores dispostos em módulos escuros e frios. Há algo sobre os escritores que realmente me fascina, não são as histórias em si, nem o estilo, mas os fragmentos de vida deixados em cada obra. Provas de que sua voz pode continuar a ecoar, mesmo depois de o seu coração ter parado de bater.

Quinta estante, fim do corredor. O maior dramaturgo de todos os tempos não merecia um lugar de destaque? Aparentemente, o dir. Prescott não era um grande entusiasta de sua obra, assim como meu pai, que odiava Shakespeare tanto quanto odiava o próprio diabo, ou os Beene. Meu pai é assim, um odiador de quase tudo. Mas não estou me queixando, na maior parte do tempo ele é um bom pai. Muito melhor para mim do que o vovô foi para ele.

Meu avô é o tipo de pessoa que faz qualquer um tremer dos pés à cabeça sem precisar sequer abrir a boca. Quando meu pai tinha a minha idade, era o vovô quem ditava as regras em Madison Place, quem dava as cartas. Do prefeito ao delegado, todos faziam o que ele mandava. Ninguém fala muito sobre isso lá em casa, mas o padre Cadence às vezes deixa escapar uma coisa ou outra quando aparece para jantar. Com o tempo eu fui juntando as peças, até chegar à conclusão que o vovô era uma espécie de Besta Apocalíptica agindo em Madison Place. Mas quando perguntei ao meu pai sobre isso, a resposta foi a seguinte: Não devia dar ouvidos ao Cadence. O exagero está arraigado em suas entranhas.

Podia até está. Mas o padre Cadence não é um mentiroso, muito pelo contrário, é um daqueles clérigos que leva as Escrituras bem a sério. Ele reza umas dez vezes ao dia, ajuda os pobres e até jejua.

– Essa é a parte mais difícil de todas, jejuar. nos confidenciou uma vez, durante o jantar.

Pensei que fosse o celibato. a mamãe participou, com os olhos fixos no papai.

Ele não riu, nem o padre, mas eu sim. Na época, acreditava que celibato fosse o mesmo que flagelo.

O senhor devia abandonar o celibato, padre Cadence, essa coisa pode matar. aconselhei.

Os olhos dele por pouco não voaram das órbitas, o papai quase engasgou com a comida, mas a mamãe riu. Muito.

Garoto esperto! ela exclamou, erguendo uma taça de vinho. --- Aprenda com seu filho, Max!

Viola e Rigel - Opostos 1Onde histórias criam vida. Descubra agora