É curioso como algumas pessoas se aproveitam de sua posição na empresa para sustentar falsos personagens. Bárbara era apenas dois anos mais velha do que eu. Mas comportava-se como se tivesse duas vidas de  vantagem. Tratava mal do contínuo aos editores. Tentava sem sucesso mascarar a insegurança estampada em seu rosto com grosserias e exigências descabidas. Dizem, e aí é só fofoca de bastidor, que sua ascensão meteórica de estagiária a editora ganhou força após favores não jornalísticos prestados à cúpula do jornal. Entre os favorecidos estaria Nereu de Castro. Não gosto dessas especulações machistas, mas é fato que a capacidade de processamento do seu cérebro é inversamente proporcional à sua bunda de tanajura e aos seus peitos turbinados.

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Fechei minha terceira página de matéria pouco antes das 20h e fui para casa. Jantei com meus pais e tentei parecer o mais natural que pude. Depois de comermos, assistimos ao telejornal juntos. Eles vibraram quando o meu nome foi citado pelo apresentador do jornal da noite. A reportagem começou dando a notícia da morte de Leninha. Em seguida exibiram uma reprodução da minha matéria no Diário e mostraram trechos do vídeo feito por Jéssica. Por fim falaram meu nome ao informar que a filha da vítima pedira ajuda a uma jornalista do DC.

— Que história horrível, filha. Então foi por isso que você se atrasou ontem para o jantar do seu pai...

— Foi mãe.

— Você falou com essa criança que fez o tal vídeo? Nossa, ela deve estar com a cabecinha muito bagunçada.

— Falei só por telefone, mãe. Foi ela quem ligou para o jornal pedindo ajuda. Mas não vamos falar de coisa triste não, né Dona Sueli ? — Desconversei e evitei detalhes da história.

— Tá certo, filha. De qualquer forma estou orgulhosa de ver seu esforço repercutindo na TV. Você tem trabalhado duro e merece esse reconhecimento.

Aproveitei a deixa pra falar que sairia no fim da noite para complementar uma reportagem. Para não preocupá-los, omiti os detalhes. Apenas avisei que um carro do jornal passaria às 23h20m na portaria para acompanharmos o plantão da madrugada em uma delegacia. Entrei no meu quarto, tomei um banho e deitei na cama. Precisava descansar e controlar a ansiedade. Na mesa de cabeceira, um sinal sonoro indicou nova mensagem no celular. O recado enviado por Pereira me tirou o sono:

"Confirmado pela perícia. A digital confere com a da identidade que o tio nos entregou. O dedo é mesmo da Jéssica. Nos vemos daqui a pouco."

Eu não tinha dúvidas. No momento em que abri aquela caixa eu tive certeza de que o dedo era dela. E desde então um eco no meu inconsciente não me deixava descansar. Jéssica está morta...Jéssica está morta. Tentei ignorá-lo durante todo o dia, mas no silêncio do meu quarto ele ganhou força...Jéssica está morta... Sentada na cama, com as duas pernas recolhidas junto ao peito, assustei-me quando meu pai entrou no quarto.

— O que está havendo, Clara? — perguntou como se radiografasse minha confusão mental. Se não fosse médico, meu pai daria um ótimo repórter. Tinha a capacidade de enxergar a alma das pessoas — Não senti você animada com sua matéria chamada na TV. Tá tudo bem no trabalho?

— Pai como você faz para não se envolver com o sofrimento dos seus pacientes?

— Ah, isso é algo que a gente só aprende com o tempo, filha. Não se trata de ser frio, mas de entender que você não é o causador do problema que aflige aquela pessoa. Pelo contrário. Com seu conhecimento e seu trabalho você pode amenizar o sofrimento e orientá-la na busca de uma solução.

— Eu não consigo me distanciar das histórias que conto. Sofro com meus personagens.

— Filha, uma vez uma paciente saiu do meu consultório, escreveu uma carta para os três filhos pequenos e deu um tiro na cabeça. Por um tempo me questionei se devia ter-lhe dito que ela tinha metástase em estágio avançado. Senti-me como se tivesse puxado aquele gatilho. Depois percebi que estava além do meu controle.

— Sabe a garotinha que filmou a mãe baleada?

— Essa que apareceu no jornal? O que tem?

— Arrancaram o dedo dela como castigo por ter filmado aquela cena. Mas só descobriram que ela havia gravado as imagens porque eu divulguei isso na minha matéria.

—Tenho orgulho de ver sua coragem e empenho para lutar por justiça, filha. Não se culpe pelas loucuras do mundo. Tenha certeza de que você também não puxou esse gatilho. As pessoas têm livre arbítrio para o bem e para o mal.

Meu pai tinha o dom de captar minhas angústias e de me acalmar com suas palavras. Desde sempre, desde quando desconstruía fábulas inventando finais engraçados para que eu, ainda garotinha, adormecesse risonha em seus braços. Sei que ele percebeu que minha tensão não se encerrava no que já havia passado. Mas eu não queria preocupá-lo e ele respeitou o meu silêncio. Fez o sinal da cruz em minha testa, beijou-me o rosto e, ao apagar a luz, pediu que eu tivesse juízo no plantão da madrugada. Ele também sentia que algo grave estava por acontecer.


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#NOTA DO AUTOR:

A PARTIR DO PRÓXIMO CAPÍTULO ENTRAMOS NO TERÇO FINAL DE NOSSA HISTÓRIA. AGRADEÇO A TODOS PELA LEITURA, VOTOS E COMENTÁRIOS.

PREPARADOS PARA A PRÓXIMA MADRUGADA? 

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