— Repórter que segue o manual e não traz resultados tem aos montes por aí....

Um singelo "oi?" foi só o que consegui dizer diante da surpresa ao me virar e ver quem havia me cochichado aquela frase. Era Nereu de Castro, um dos mais premiados repórteres policiais de sua época e atual diretor da redação do Diário. O mesmo cara que 5 minutos antes acabara de me dar um megaesporro na frente dos meus chefes e do Tião. O mesmo que comunicara sobre meu afastamento temporário das coberturas policiais. Percebendo meu misto de surpresa e desconforto, ele emendou ainda mais perto do meu ouvido:

— Se contar a alguém que eu disse isso te desminto em público. Lá dentro daquela sala de reunião quem falou com você foi o diretor do jornal. Agora, de repórter para repórter, quero te dar os parabéns. Gosto do seu estilo, da sua garra e do seu faro para notícia, Clara. Jamais perca esse brilho nos olhos. Só tome cuidado para não se matar. Repórter morto não dá furo.

Não preciso dizer que aquele café teve um indescritível poder revigorante. Voltei para a redação pronta para bater 50 páginas de suíte do caso. Deram-me bem menos do que isso. Como o jornal impresso seria rodado naquela noite, ainda antes do encontro marcado no posto de combustível, não podíamos adiantar muita coisa. Até porque não sabíamos de fato como aquilo tudo acabaria. Decidimos sair com a capa do dia seguinte apenas anunciando o sequestro de Jéssica.

Pela manhã, quando o jornal chegasse às bancas, a informação do sequestro já não seria mais sigilosa. Para não corrermos o risco de dar uma barriga — o que na linguagem jornalística é o mesmo que notícia falsa — optamos por focar a primeira página na denúncia de Anderson à Antissequestro e na certeza que tínhamos de que a polícia civil já investigava o rapto. Ainda não podíamos cravar com 100% de certeza que os PMs estavam por trás do sumiço da menina. A ligação que gravei, como cogitou Waldir, podia ser uma armação de Linho. Nada nos garantia que os homens com quem ele falava pelo celular eram mesmo policiais.

Fui orientada a não pedir qualquer resposta institucional à PM sobre o sequestro. Se fosse verdade, e os policiais soubessem que a imprensa já estava ligando o desaparecimento da menina a eles, era provável que cancelassem o encontro com Linho. Podiam ligar subindo novamente o valor do resgate, ou ainda pior, considerar a possibilidade de dar fim à vida de Jéssica. Não valia correr o risco.

A primeira página do DC rodou com a manchete: "SEQUESTRADA MENINA QUE FILMOU PMs NA BAIANA". Embaixo da chamada principal, um pequeno texto explicava que a família da mulher baleada e morta na Baiana procurou a polícia para denunciar o sequestro de Jéssica. O texto dizia ainda que, para o irmão da vítima, sua sobrinha havia sido levada pelos mesmos policiais que mataram sua irmã.

A foto principal da capa era de Jéssica com uniforme da escola. Abaixo dela, outra chamada gritava: "EXCLUSIVO: Imagens obtidas pelo Diário mostram que policiais militares já seguiam moradora da Baiana antes dela ser baleada". O DC não acusava formalmente a polícia, mas quem lia as duas chamadas na primeira página entendia o recado. Dentro do jornal foram três páginas sobre o caso. A abertura da reportagem trazia a foto que fiz da homenagem à Leninha na escadaria em que ela tombou baleada. Embalamos o que tínhamos de exclusivo e no pé colocamos as declarações do comandante geral da PM, dadas durante a coletiva de imprensa pela manhã.

Pelo segundo dia consecutivo sairíamos com uma série de desdobramentos exclusivos do caso e bem à frente da concorrência. Mas sabíamos que a grande bomba poderia vir no jornal seguinte, com o desfecho da operação da madrugada e suas consequências. A possibilidade de uma reviravolta antes mesmo do amanhecer deixou todo o pessoal do online acelerado. Bárbara escalou um editor de vídeo exclusivo para o site no turno da madrugada. Por e-mail, gritou-me  o óbvio sobre a operação no posto: "Clara, quero PRIORIDADE na postagem do desfecho dessa operação no site do jornal. A história é nossa. NÃO TOLERAREI furos". Ora, antes de "nossa", querida, a história é minha. Vaca!

PRIMEIRA PÁGINA - Conflito na BaianaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora