Opus Corpus in G minor

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Ei, Fernando, venha ver
O violino afinado tocando;
Uma melodia dispersa; chorosa.

Venha ver, Fernando!
Hoje é o dia de passagem;
Deixando essa, ainda há outra viagem.

Corra, Fernando; ouça isso; veja isso
Um breu; janelas fechadas; um silêncio;
Se acende a vela e soa o violino;
Um réquiem; toca lá no fundo;
Invade a alma.
Corra Fernando, venha ver!

E ao dedilhar vertical se inicia a nota;
Como quem rasga o peito; tira do leito
O mais preguiçoso ser;
Veste-se de culpa o mais infame ente;
Fernando, vista-se, venha ver!

A vela iluminando o violonista solitário; invisível e crescente;
Corra, venha ver!
Na sala jaz em imóvel terno; venha ver!
Tão taciturno; silêncio noturno; noite barulhenta!
Não corra, Fernando; derramar pelos olhos
Não é triunfar; vista a culpa e venha.

Troque passos alienados; mas venha!
Veja só como soa estridente
E a vela não se apaga,
Não se jogue daí, não seja egoísta
E respeite o dia; o dia dos que foram.

Desce duas casas verticais;
Impulsiona as crinas sobre o aço,
Venha, Fernando; não se vista de tristeza;
Pare de cinismo.

Janela aberta; barulho passado; de pé em pé;
Violino agora calado encaixado na caixa;
Shhhh!
E o vento soando solitário salteia em meus ouvidos.

Fernando, não se faça de dissimulado;
Venha ver aqui o corpo ao lado;
Não se traje com sua dor; é inexistente; permanente
Inexistente!

Corra, Fernando, largue as lâminas;
Barbas feitas; quarto fechado; sem luz;
Largue o violino, menino; tome o comprimido branco!
E venha ver; jaz outro; e outro
E outros!
São irmãos; são vizinhos; vítimas;
Conhecidos, parentes, são gente!
É: Luiz, José, Maria!
Que horror, quanto sofrer;
Quanta dor aguenta um só ser?
Olhe, Fernando, corra, venha ver!

Abra os olhos; se bem que não é
Necessário para se ver;
Certa perturbação; é Fernando!
A vela; o violino; a trágica tragédia
Trajada de tempo; lamento?
Não vale; arde em chama a vela sobre a cama
Dos pulsos o sangue escorre;
E o violino soa afinado; como quem toca a valsa da despedida;
Impeça-o, Fernando!
Socorra-o, Fernando!
O meu deus, não pode ser... É o Fernando!

"Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison"

Fernando... Não, Fernando, não se vista com este
Terno, é deselegante!
A dor alheia é mais empolgante;
Não se vista assim; não vá longe;
Não é sua essa dor; é de sua cabeça;
Vamos não pereça!
Ontem foi um, homem feito igual a ti;
Matou-se com um tiro na cabeça.

Vamos Fernando.... Hoje é o seu dia;
O violino que lhe pertencia agora é meu;
A solidão me fez tomar posse;
Um remédio; uma, duas doses
E só; aí eu durmo em paz!
O violino soa para mim; e espero coloca-lo
Na caixa; antes que as coisas se avessem

Vá, Fernando, finado Fernando;
De gritos mudos e arregalados olhos cegos!
Em meu caderno um memorando;
Em meu coração jazeu um Fernando
Que se foi; está navegando!
Kyrie eleison.

Entre Metáforas e UtopiasWhere stories live. Discover now