2. GELATINA DE MORANGO

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- Eu te explico, Sofia. Teu coração faz um "click" quando se contrai, provavelmente está com um problema na valva mitral, a sua valva do lado esquerdo do coração.

- O quê? – fiquei apavorada.

Minha imaginação juvenil fazia analogia às palavras de um mecânico. "Problemas na válvula, minha senhora. Vamo dar uma recauchutada na rebimboca, uns apertão na parafuseta que logo vai tinindo!"

Minha imaginação era fértil, mas minha memória nem tanto. Me esforcei para lembrar das aulas de biologia, e de tudo que eu já tinha estudado a respeito. Foi inútil. Eu sabia por onde o sangue entrava venoso e ganhava o corpo novamente limpinho. Mas de que adiantava isso? Mal sabia estalar os dedos, mas o coração, aparentemente, eu sabia. Meu cérebro estava em pane. O sistema estava quase precisando ser reiniciado. Eu só tinha uma certeza: a de que não parecia boa coisa.

Nos dias que se seguiram fiz todos os exames que ele me pediu e, por precaução, passei a subir as escadas de casa e do colégio vagarosamente, parecia uma senhora de sessenta anos poupando as minhas válvulas frouxas. Tudo bem que o médico chamava de valvas e não válvulas, mas eu adorava me comparar com um carro velho meio enferrujado precisando de um mecânico.

Fiquei obcecada pelo meu suposto problema, pesquisei na biblioteca da escola tudo o que pude sobre o assunto. Descobri sintomas que eu não estava muito interessada em saber e acabei descobrindo também que as mulheres normalmente são as mais afetadas pelo caso. Mulheres, sempre predestinadas a sofrer do coração.

Foi nessa mesma época que comecei a andar para cima e para baixo com um exemplar de Coração Fraco do Dostoievski debaixo do braço. Encontrei ele em um sebo no centro da cidade, não entendi muito bem o que dizia, mas adorei. Qualquer coisa que fizesse menção a corações problemáticos me chamava a atenção.

Sempre que eu me distraía durante as aulas, me pegava desenhando corações em todos os cantos. Quando o caderno ficava cheio, eu usava a carteira. Muita subversão pichar coração. Era o máximo de contraversão que eu poderia experimentar.

Sofrer do coração deveria ser uma coisa comum para meninas de dezessete anos, mas não desse jeito. E sim, pelo menino bobo que é popular demais para sair com você, ou por aquele que tem que estudar demais em vez de te ver, ou por qualquer um que prefira sua melhor amiga a você. Assim é o modo certo de sofrer do coração quando você tem só dezessete anos. E sinceramente, comecei a sentir medo de não ter tempo de viver desse mal. O problema cardíaco clínico me fez ter medo do meu coração acabar me tirando a chance de sofrer por desilusões amorosas.

O fato é que não melhorei e os resultados dos exames não foram muito bons, então não demorou muito para que estivesse novamente a caminho do médico.

- Sofia... – resmungou sem vontade a recepcionista com cara de maus amigos depois de abrir abruptamente a porta que dava pros consultórios quando chegou a minha vez.

E lá estava eu sentada em sua sala novamente enquanto o médico avaliava meus exames e eu seus cartazes na parede.

- Realmente, senhorita Sofia, como eu pensei, você está com prolapso da valva mitral.

- Ai meu Deus, eu vou morrer? Eu li tanto a respeito... Tenho quantos dias de vida? – senti minhas bochechas corando. Um calor muito forte tomou meu corpo e senti que estava quente, suando, ainda que minhas mãos estivessem geladas como pedra. Mas novamente, ele tentou me acalmar.

- Não, não Sofia. Esse probleminha, normalmente, é fácil de administrar, e você vai ficar bem.

Aparentemente, "normalmente", não se aplicou ao meu caso e as coisas se agravaram bastante me fazendo precisar de um coração novo. Consegui terminar o último ano escolar com muito custo entre o hospital e a escola porque implorava pros meus pais permitirem.

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