Capítulo 7

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Capítulo 7

Quarta-feira, 01 de abril de 2065.

Um velho ditado entre o Povo da Areia dizia que somente um verdadeiro Lagarto conseguiria atravessar a vastidão desolada do deserto do Volume Morto sem queimar a vista, tão forte era o reflexo das areias. Eliseu não dava a mínima para velhos ditados. Enquanto que Ester e os outros viajantes usavam óculos de sol para se protegerem, Eliseu seguia com a vista desprotegida, pisando sobre a terra seca, rachada, regando o caminho com o suor de seu corpo. Correntes oscilantes de ar quente fervilhavam no horizonte, flutuando para o alto, como se toda a vida ali evaporasse. O oceano de areia se fundia com o brilho do céu até que se tornava impossível distinguir onde um começava e o outro terminava. Algumas elevações e poucas manchas verdes indicavam que havia vida além dos caminhantes do deserto. Estavam apenas no começo. A travessia do deserto levava três dias inteiros se o Sol não fosse tão quente e fizessem poucas paradas. No ritmo que estavam levariam quatro dias.

Situada abaixo das comportas das represas do Sistema Cantareira, o Volume Morto nada mais era do que a reserva de água com 400 milhões de metros cúbicos. Quando em 2014 a Região Metropolitana de São Paulo enfrentou sua primeira crise de abastecimento por causa da falta de chuvas e dos consequentes recordes de queda no nível do Cantareira, o Governo do Estado e a Sabesp, órgão responsável pela distribuição da água, começaram a fazer obras para conseguirem bombear a água dessa reserva, que sustentaram a capital por um tempo, mas anos se passaram, veio a guerra e então, até a última gota d'água secou depois que as bombas químicas atingiram o solo.

Ester fez menção de falar alguma coisa, mas a saliva na garganta descia áspera. Pela posição da sombra aos seus pés, já havia passado o sol do meio-dia, concluiu a menina. Até ali o deserto não era o pior dos lugares. Já havia enfrentado dias tão duros como aquele no acampamento, porém, naquela época tinha o pai para protegê-la, podia se esconder do sol na sua tenda e passar o dia deitada, vendo figuras do passado na sua coleção de revistas, sonhando com um mundo colorido, brincando com suas bonecas na companhia de Mirian. Usava um vestido estampado, leve, solto, de alcinha. Era só uma menina dos cabelos compridos, lisos. Mas isso foi antes de Daniel mudar a sua vida e tentar invadir sua intimidade.

— Vamos parar um pouco – anunciou Baruc colocando as mãos sobre os joelhos. Soltou a mochila das costas que caiu sobre a terra levantando poeira.

Ester suspirou aliviada, lambendo os lábios na esperança de amenizar a dor da pele se partindo. Jamais diria isso, mas esperava parar para descansar a um bom tempo. Caio e Kauan também estavam visivelmente exaustos e se jogaram no chão largando as mochilas. Cristhian continuava encarando Ester e nada a incomodava mais que aquilo. Nem mesmo os pés suados, ou a insistente dor de cabeça, sinal claro de desidratação. Desviou o olhar de Cristhian e se deparou com Eliseu enxugando o suor na testa e depois lambendo o peito da mão aproveitando para umedecer os lábios. Ester fez uma cara de desaprovação, imaginando que gosto teria aquele suor nojento sobre aquelas mãos imundas. Preferia morrer de sede a ter que lamber aquela mão – enrugou o nariz em repulsa. Retirou o boné da cabeça e se abanou um pouco tentando se refrescar, enquanto Baruc organizava a primeira rodada de água.

— Não dá pra exagerar – avisou Baruc abrindo a garrafa pet de dois litros. Um vapor discreto subiu. — Não esqueça que estamos em seis pessoas.

— Mestre Baruc, sugiro dar a água primeiro para Ester, já que ela é a única mulher do grupo e a mais frágil – sugeriu Cristhian sorrindo para Ester, sabendo o quanto isso a provocava.

— Pode dar primeiro a ele – ela retrucou. — O garotinho talvez não aguente ficar nem mais um minuto sem água.

— Não esqueça que eu sou um verdadeiro Lagarto. Já atravessei esse deserto e voltei. Sei ficar bem mais tempo sem água.

GUERRA AZULWhere stories live. Discover now