"...esse coração descompassado..."

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Twitter: ISBB5H


Narração: Camila

Miami – South Beach – Posto da Guarda

Eu ouvi certa vez que nossos sonhos são representações distorcidas dos assuntos do nosso inconsciente. Seus temas e enredos ora mirabolantes, ora simples, são manifestações disfarçadas que fogem da escura prisão das questões que conscientemente não conseguimos processar.

Eu certamente tenho muito pendente de processamento dentro de mim e por isso mesmo odeio sonhar. É claro, isso é por certo absolutamente estúpido, afinal, se bem me lembro do "ciclo do sono" que aprendi ainda na época da universidade sonhamos todas as noites, embora nem sempre seja possível nos lembrarmos. O problema é que levo muito a sério a primeira parte e eu realmente, absolutamente, definitivamente odeio sonhar e me lembrar de tudo na manhã seguinte. Odeio o sentimento de realidade vivida que os acompanha, odeio quando não fazem sentido algum e odeio ainda mais quando fazem. Odeio quando são bons e ao acordar me dou conta de que nada daquilo foi real e detesto quando são ruins e ao acordar percebo que a realidade foi ainda mais cruel comigo ao longo da vida.

Infelizmente a noite de ontem foi recheada de sonhos. Cenas, imagens e episódios baseados em memórias dolorosas demais. Memórias que há muito não vinham à tona, apesar de tudo.

No sonho eu corria. Era isso, apenas corria.

Corria das vozes exaltadas que gritavam nos corredores da velha escola, nas ruas do meu antigo bairro e do lado de fora do meu antigo quarto.

Corria das mãos furiosas que queriam me ferir. Que insistiam em me punir e aumentar a dor que dentro de mim já era grande demais.

Corria da dor. Do medo. Das acusações. Do julgamento. Corria até estar sozinha e uma vez sozinha, era isso. Solidão total e completa. Dolorosa.

Eu definitivamente odeio sonhar.

Nesse instante, porém minhas mãos apertavam o volante com tanta força que os nós dos meus dedos estavam completamente esbranquiçados. O carro estava desligado e devidamente estacionado, mas o rádio ainda ligado. A melodia suave sendo pouco a pouco sobreposta pela música vibrante de algum quiosque próximo de onde eu estava.

Crianças correndo entre os carros estacionados como o meu e casais caminhando calmamente, alguns em direção à praia e outros saindo dela em direção os restaurantes à beira-mar. Gaivotas se alimentando das migalhas no chão e o meu celular tocando. Uma, duas, três vezes até o visor se apagar e eu nem sequer me dei ao trabalho de bisbilhotar para ver quem me procurava.

Eu já sabia.

Tomei um último segundo reunindo coragem e agarrei minha velha mochila no banco do carona antes de finalmente sair do veículo. Ajeitei meu short, tirei os sapatos e guardei-os no porta malas junto de outros pertences que seriam desnecessários até o final do turno.

Feito isso rumei em direção ao Posto e Normani foi a primeira a notar minha presença limitando-se a um breve menear de cabeça e deixando-me livre para me trocar devidamente. Escolhi propositalmente usar um short vermelho um pouco desbotado e uma regata branca, sabendo que minha amiga usaria um conjunto de regata e short vermelhos me lembrando que da última vez em que trabalhamos juntas e usamos os mesmos conjuntos de uniformes ficamos parecendo uma dupla de enfeites natalinos, embora não houvesse muito o que ser feito a cerca disso. Os uniformes da Guarda são quase todos de péssimo gosto e qualidade e em sua maioria planejados exclusivamente para corpos masculinos e com isso quase sempre terminávamos tendo que adaptá-los mesmo que de forma mínima.

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