Parte 8

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Num primeiro momento, enquanto eu saía da cama para lavar o rosto, imaginei que o caso da professora esmagada, que me tomara os últimos dois dias, desapareceria de minha vida com vergonha. Eu não teria coragem de voltar a buscá-la, mesmo que minha curiosidade a seu respeito estivesse no auge, e essa decisão me levaria a um esquecimento traumatizante.

Mas me sentei à mesa para me servir do café-da-manhã, na minha porção sagrada de pão integral duro com mel, quando subitamente me deparei com a mulher à minha frente, admirando as frutas que minha mãe comprara no dia anterior. Destinou-me um olhar aprovador à minha comida saudável, e aquela piscada de olhos me distraiu por um bom momento. Ela me parecia bem, de gestos animados e expressão vivaz. Eu a projetava assim porque, verdadeiramente, eu a queria por perto, e meu pensamento era carente também de companhia. Queria que ela se impressionasse pelo meu dia-a-dia e assim quisesse me conhecer, já que somente na imaginação eu provavelmente teria essa chance. Portanto, imaginei e não parei de imaginá-la.

Vi que, na verdade, faria perfeito sentido que ela se mantivesse comigo, pois uma noite violenta era ainda assim uma noite intensa. Tivemos uma breve conversa sobre os perigos dos encontros entre desconhecidos, na qual lhe apresentei todas as razões para a minha fuga do dia anterior. Falei inclusive sobre o meu medo da noite. Ela os compreendeu não sem antes me zombar, pois afinal um trabalhador perdia muito da vida se evitasse a madrugada. Depois, pedi licença para me arrumar para o trabalho.

Seu rosto não tinha aquele viço fúnebre de seus últimos dias, permitindo uma mulher muito maliciosa e brincalhona em seu lugar. Não sei de onde tirei a ideia de que ela se comportaria assim sem todo o funeral que carregava em si, mas deixei que suas evidências se manifestassem em sua observância hilariante do desodorante feminino que eu usava às escondidas e ao calção furado entre as pernas que eu retirava para vestir o uniforme. No fundo, eu precisava de quem risse de mim comigo.

Teceu-me leves comentários irreverentes entre uma ação e outra e fez até graça de minhas tentativas de disfarçar meus braços sem músculos com camisas de manga mais cumprida:

"Menino, a feiúra é uma bênção! Se não tem salvação, também não tem preocupação, porque só resta aceitar o fato dado. Aproveita sua sina e relaxa."

Ambos rimos das lições de vida e saímos de casa com muito bom-humor. Com aquela companhia, minha caminhada de uma hora ao Centro de Informações ganhou novíssimos sabores. Apresentei-lhe todas as pedras do caminho e todas as casas desnaturadas, com chave-de-ouro nos pagodeiros das sete da manhã amanhecidos num bar próximos ao trabalho. Ofereceu-me uma trégua de seu ar malicioso ao me ouvir, razão pela qual lhe dediquei profunda gratidão. Minhas histórias, mesmo tolas, continuavam sem fim, reabastecidas com perguntas e curiosidade. Ela prestava atenção a todos os meus comentários e percebia como me era precioso aquele caminho ao trabalho.

Ao chegarmos ao serviço, sentamo-nos fora do prédio, esperando o horário de meu primeiro passeio guiado. Ela estava ansiosa para conhecer mais sobre as estátuas comigo, e também para descobrir se o grupo teria pessoas engraçadas. Eu lhe disse que muito provavelmente o grupo seria de crianças chatas, e que eu deveria frustrá-la um pouco em suas expectativas a respeito dos ensinamentos, porque das estátuas só se deveria aprender a respeito de sua superioridade.

Em minha dinâmica educativa, eu contava histórias e até recitava poesias, complementando a teoria com algumas atividades práticas, a exemplo das simulações de esmagamento. O objetivo era deixá-las receptivas à noção de imobilidade de maneira geral, de modo que pudessem aplicar tal conceito a tudo na vida e então garantir que o mundo se fixasse eternamente, num futuro sem alternativas.

A mulher tinha até mais experiência do que eu no trato com os pequenos, e por curiosidade eu lhe perguntei como fazia para lidar com suas turmas. Ela me disse que não tentava controlá-las demais, pois era inútil e apenas deixava-as com medo de inventar novas formas de ver o mundo. Ao invés de confrontá-las com o medo do erro, estimulava-as ao aprofundamento de suas perguntas, oferecendo não a verdade, e sim a discussão. No fundo, encenei assim a fala dela por representar minha própria frustração.

As Estátuas Gigantes de MaiaraWhere stories live. Discover now