Parte 7

4 0 0
                                    


Sentamo-nos à beira da calçada, sobre cadeiras de plástico e mesa disfarçada com esteira e girassol. Meu amigo correu em busca de cardápios. Naquela ausência eu confrontei o silêncio com a professora. Era preciso muita força para aceitar a humilhação de ter sua vergonha exposta e transformada em alvo. Calma diante de mim, ela buscava apenas o chão. Piscava freneticamente, curvava-se sobre si mesma: atormentava-se e sequer em sua mente havia refúgio. Eu a encarava esperançoso de que nos comunicássemos de outro modo além da tensão energética, mas fomos tomados: desviar de seu rosto era impossível.

Meu amigo voltou à mesa num estado de espírito iluminado, indestrutível. Venceu a primeira batalha com a mulher, arrastou-a à mesa de seus planos caridosos e certamente fervilhava de ideias. O contraste entre um fraco e um gigante é o mais acentuado de todos. Aproximou sua cadeira da dela, estendeu-lhe à frente o papel com as opções e gentilmente a seu lado lhe pediu que escolhesse. A mulher levantou lentamente suas mãos à mesa, num movimento que recobrou a si um domínio de espaço. De território demarcado, arrastou seu olhar já baixo num paralelo até o cardápio, em silêncio absoluto. Respirou profundamente ao mesmo tempo em que soprou sobre nós o vento dos cartazes voadores. Seguramos os apetrechos da mesa. Na calmaria, eu senti o odor de um corpo condenado e sujo, uma essência de desespero de quem suava frio.

Meu amigo e eu escolhemos nosso lanche: duas tigelas de açaí com mel e rodelas de banana. Acompanhamos com ternura o dedo negro, murcho e gordinho que apontava apavorado uma linha entre as opções. A mulher escolheu açaí puro com melado de jabuticaba, em pequena porção. Ofereci-me com prontidão para levar os pedidos ao balcão da lanchonete. Do fundo de minha mente, eu sentia o estouro de um gigantismo inevitável, um levantamento de minha cabeça a dez metros do chão. Diante de criatura tão arrasada, até eu me sentia forte e maior. Para não cair em piedade, ofereci-me o benefício da distância, ainda que momentânea. Pude respirar.

Quando voltei à mesa, meu amigo terminava uma pergunta. Ela nos sussurrou baixinho uma resposta resignada: trabalhava na Escola Estátua Calada, era recém-formada na universidade federal e morava com os pais. Silenciou-se em uma pausa que acreditei ser apenas um prelúdio, e que se mostrou um grande ponto final. Meu amigo pediu mais detalhes sobre seu trabalho, perguntou se ela se sentia valorizada por sua equipe, se lhe pagavam bem. Os pobres lábios rachados da professora se alegraram antes de despejar suas más notícias com o recheio do sangue de seu ressecamento. Ouvimo-la com incrível dedicação em seus pesares sobre o salário baixo, a equipe que não a respeitava e o vazio de sua atividade. Ela sonhava em ser uma estimuladora do pensamento e, na verdade, era uma máquina de repetição:

"O professor posiciona e a estátua ceifa."

Suas frases me eletrificaram, me fizeram pinicar o corpo numa coceira aguda que corria desesperadamente ao meu crachá. Retirei-o do peito, guardei-o no bolso, abrindo-me livre à sede daqueles pensamentos. Meu amigo, por seu lado, continuava inclinado em sua face de candura sobre a escuridão da mulher, imune a seus ataques. Seu crachá brilhava e seu rosto da foto três por quatro o apresentava em sua maior alegria. A mulher fazia do retratinho o seu interlocutor, misturando "Secretaria Municipal de Estátuas Gigantes" com personalidade, recebendo em cada olhadela o golpe de quem se orgulhava de sua capacidade de esmagar. Ela não demorou a se calar.

Nossos pedidos chegaram à mesa, antes que uma nova série de perguntas fosse posta à roda de conversa. Conferi minha tigela violeta com bananas picadas. Em seguida, deparei-me com a face da mulher virada ao meu peito, onde antes se encontrava meu crachá. Seus olhos então fuzilaram os meus, pois sem retrato não lhe sobrava nada além de meu rosto a encarar. Ela me percebeu em meus medos.

Meu amigo saudou a chegada de nosso lanche, comentou leviandades sobre os sabores e as sensações de uma boa tigela de açaí, e quis saber da mulher quais eram suas comidas favoritas. A tal ponto ela retirava da boca uma primeira colherada. Talvez pela primeira vez tenha se percebido grata. Chupou o metal e deixou que seus grossos beiços lhe dessem tempo para decidir se responderia ressentida ou agradecida. Nós dois a admirávamos com ansiedade, num sentimento temperado por empolgação, no caso de meu amigo, e por curiosidade no meu. Surpreendentemente, porém, ela não se decidiu, rendendo-se à evasão: sacodiu os ombros e balançou a cabeça negativamente. Surgiu em seu rosto um sorriso malicioso logo abafado por uma nova colherada, o que me atiçou. Era força que renascia através de um assunto ignorado?

Golpeado, meu amigo cerrou os olhos e a retribuiu com mesmo sorriso, que em seu caso era nada mais do que uma preparação. Ele nos convidou a um combate cujo qual estava para conjurar com a magia própria do competidor que era. A terra tremeu, vítima dos passos de um gigante que deixou seu pedestal na praça vizinha. Meu pulso acelerou.

A estátua se aproximou de nós e arrancou de sua vista a árvore que nos cobria. Ameaçou a mulher, a moça feia que encontrava na tigela o único alívio de sua vida. A qualquer momento ela a pegaria em sua mão e a levaria ao céu, torturando-a para que prometesse abandonar sua treva. Meu amigo interviu. Ousou pedir-lhe um pouco mais de tempo. Em resposta, a estátua lançou sobre a mesa um vórtice silencioso que nos sugava a um centro no qual eventualmente nos encontraríamos e não teríamos nada a dizer. Tudo morreria. Fui o primeiro a alcançá-lo, em dor pelo silêncio, pois nele eu já estava antes sequer que começasse. Pensei em mim, em meu desconforto. A pressão de todos os lados me tirava toda a curiosidade. O ambiente ao redor era hostil: um competidor, uma morta, uma estátua gigante cronometrando a utilidade.

O buraco negro sobre a mesa tragava a força da mulher com grande fome. Ela tentava lhe resistir com colheradas, mas seu açaí já estava para terminar e então ela não teria mais fonte de força. Não nos sobraria nada além do esmagamento de cada um em cada um. Devorei minha tigela para que pudesse escapar do golpe final, quando quer que ele viesse.

A noite nos cobria além da falta de conversa, os perigos sondavam cada palavra não dita, cada espaço livre da cidade. Meu amigo insistia em sua luta, com mais perguntas ignoradas. Tornou-se impossível saber se a mulher se envergonhava de nós ou se apenas resistia. A escuridão retirou dos rostos todas as marcas de nossa batalha, deixando-nos cegos em campo ruim.

O vórtice obscuro nos puxava a um mundo sem luz e sem verbo. A qualquer momento desceria do céu uma grande mão de pedra a acabar com todo o jogo entre seres pequenos e bestas. Tão logo meu amigo se decidisse por mais contundência, a violência seria total. Ele esperava dela uma série de confissões e não descansaria enquanto não as atingisse. Aterrorizado pela proximidade dos corpos que se arrastavam a um centro que lhes queria comprimidos um na força do outro, levantei-me da cadeira e pedi permissão para partir. Olharam-me surpresos. Em seguida se conformaram: meu amigo agradeceu silenciosamente, como se seu trabalho estivesse para se tornar mais fácil a sós com a mulher, e ela me disse tchau intrigada. Virei-lhes as costas.

Tive de desviar do gigante de pedra à nossa cola para me encontrar livre de toda aquela tensão. Ainda assim, a noite era terrível e pesada. Todos os gigantes das praças me olhavam do alto sem que houvesse paz. De volta à minha casa, dormi arrependido. A mulher me queria longe de sua sombra. Meu silêncio não lhe bastaria, pois ela não queria solidão compartilhada.

As Estátuas Gigantes de MaiaraOnde histórias criam vida. Descubra agora