CAPÍTULO 5: ACONCHEGANTE CASA DO VOVÔ

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Chegamos na casa do meu avó todas juntas, era como seu eu fosse uma delas, criança novamente. Minha madrinha nos convidou para sentarmos com meus primos adolescentes na mesa e assim fizemos. O rádio estava ligado baixo. Minha prima - filha da minha madrinha - sorriu e acenou para mim do outro lado da mesa saboreando seu pedaço de bolo. Eu cortei um para mim e coloquei no pratinho vintage, peça que meu avó sempre guardava. Estava bem quente mesmo. Meu vó comia seu pedaço na sua poltrona como sempre fez, para dar lugar aos netos na mesa e conversava com meus primos engraçadinhos. Como de costume, puxei o jornal do dia que se encontrava em um canto da mesa. A manchete de vermelho berrante anunciava: "MORTES NO FESTIVAL DE INVERNO DE CURITIBA ABALA O PAÍS". Curiosa, eu leio tudo o que estava escrito sobre o assunto. Tinha até fotos de corpos cobertos com saco preto. Um pensamento inútil - e bem idiota por sinal - me apareceu: "Qual deles seria o meu?" - Mas recusei a continuar pensando sobre isso. A causa do genocídio era a eletricidade que estava sendo usada em demasia e de modo errado por muitas barraquinhas, mais do que os cabos já velhos suportavam e isso os rompeu, atingindo a plataforma de aço que estava cobrindo todo o evento como uma espécie de plataforma de luxo. Ora mais que ideia. Isso eletrocutou muitas pessoas presentes, outras se feriram, algumas foram pisoteadas e os organizadores agora terão que arcar com as consequências. Porém eu não estava sob a plataforma, então como eu morri? Olhei o obituário. Enorme. Não tinha nenhum nome de nenhum conhecido a não ser o meu. Por um instante, fiquei feliz em saber que meus amigos estavam todos vivos. Que alívio. Eu fui a única que se fodeu. Mas não entendi como. Fico sem saber nada. E tenho receio de perguntar por se tratar de uma coisa trágica. Porque raios estou neste corpo de borracha, ou melhor, látex, como se fosse uma boneca viva? Não sou feliz, nem triste, nem ansiosa, não sinto dor, não sou agitada... Não sinto nada apenas paz. Está me intrigando agora. Mas não é um intrigamento como antes, é, sei lá, bem difícil de explicar para quem é vivo. Quando estou para sentir alguma coisa, o sentimento fica retraído, é quase inexistente e desaparece pelo meu corpo de látex. Ah, como eu queria também, colocar uma roupa de látex, um batom vermelho e arrumar meu cabelo para sair por aí toda sexy e voluptuosa aproveitando minha beleza pós-morte. Não dá. Logo me sinto inocente de novo e perco a vontade. Eu queria entender isso tudo.

Foi até que eu perguntei em voz alta:

-Como eu morri?

Todos começaram a se olhar. Até meu avó. Ok.

-Deixa pra lá. - Disse, não querendo forçar a barra.

Terminei de comer o terceiro pedaço de bolo e tomei meu café com leite. Saboreei a comida com mais gosto do que antes, mas por dentro sentia um enorme vazio, um enorme mar de nada, como se eu fosse oca. Látex e oxigênio. Antes eu reclamava do meu coração congelado, agora embora estivesse muito calor, por dentro de mim estavam os ventos do inverno. O rádio ligado tocava uma música que eu bem conhecia, era Asleep do The Smiths. Todos continuavam quietinhos, raramente trocavam uma palavra. Aliás, nunca os vi reunidos assim e era por mim, eu tinha certeza. Os rostos felizes eram capazes de esconder tudo o que sentiam por dentro, o que para mim seria impossível no momento. Eu não gostava nada de estar viva após a morte. Era horrível vê-los assim. Por que não me deixaram partir assim como os outros? Meu corpo está apodrecendo de baixo da terra do quintal da minha tia e eu estou aqui, sem noção de tempo olhando para a mudança chocante que deixou a minha família indiferente. Sério, me sentia como se fosse o cruzamento de um anjo com um fantasma. Minha alma presa no látex. Se eu estivesse com meu celular - que deve ter caído naquela escuridão fedorenta - ligaria para meus amigos para saber como estão e o que aconteceu comigo. Acordando dos meus devaneios, percebo as estátuas ao meu redor: ninguém movia um músculo ou piscava, permaneciam em suas posições desconfortáveis ou não naquela sala dourada pelo sol da tarde como se o tempo tivesse pausado. Mas eu continuava me movendo normalmente e minha prima, filha da minha madrinha também. Ela olhou para mim e disse:

- Alice, venha cá. - E levantou da cadeira, começou a caminhar pela casa vazia e eu a segui. Ela continuou a falar:

-Antes de você, eles vieram falar comigo. Foi horrível, o pior dia da minha vida! Eles me trancaram em um sótão todo escuro. Eu gritava de medo. Me tiraram da casa da minha amiga e me levaram para esse lugar horroroso e ..."

-Eles quem, prima? - interrompi segurando os punhos dela percebendo que ela estava quase surtando sem entender do que se tratava. - O que eles queriam?

-Eles, os Prisioneiros da Morte, que morreram no festival com você. Eles estavam presos naquele lugar e me trouxeram lá para contar um segredo. Deus! Eles eram torturados naquele lugar, aquele porão de madeira com beliches. Uma menina, então falou por uma fresta da madeira sobre o segredo que ela não poderia contar pois estava obvio demais e que eu teria que descobrir por mim mesma. E agora me deparo com você vivendo após a morte, digo, não está feliz, não é?

-Feliz, felicidade? Eu nem sei mais o que é isso. - Respondi.

-Então seu lugar não é aqui. Se não está feliz, então corra atrás da sua felicidade. Corra para ela. - Completou.

-Mas como? - Respondi indignada.

-Não sei. Deve haver algum portal, alguma coisa assim. Encontre-o e siga seu caminho. É só isso o que eu tenho para te dizer. Desculpa.

- Não estou entendendo. - Falei.

-Eu também não. Só sei que as pessoas não devem ficar onde não estão se sentindo bem. 

Parei de andar pela sala pois percebi que tudo estava voltando ao normal. O barulho, as pessoas, a música. Voltamos para lá. As crianças estavam me procurando e quando me viram agarraram meu braço e me puxaram para brincar. Agradeci minha madrinha pelo bolo e ela respondeu enquanto meu vó dava a risada mais linda que eu já vi em minha vida. As meninas me puxavam pela escada e eu olhei pela última vez pela porta e vi minha prima com quem tinha conversado e ela picou dando um sorriso torto. Assenti com a cabeça e quase despenquei da escada pela pressa das crianças. 

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DramatugiaWhere stories live. Discover now