PARTE II. 1 - Arquimedes, um estuprador

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PARTE II

Belém do Pará. Espiei pelo banco do carona o lado mais perverso da nossa cidade. Foi um longo tempo de tocaia móvel e uma série interminável de encrencas. O Chico Sabá nos dava licença para extorquir, formar grupos de extorsão e nos fornecia todo tipo de aparelho de monitoramento – escutas, binóculos, as melhores máquinas fotográficas com seus devidos flashes, tubos de extensão, etc. Armas? – é claro. Seguíamos pessoas importantes em seus deslizes, e não poderíamos deslizar junto a elas. Grampeávamos e registrávamos grandes e pequenos escândalos em nossa rotina. Meu relato é sustentado por testemunhas dignas de crédito e pelo falatório geral. Os jornais também fornecem pistas de verificação, basta procurar nas máquinas de microfilmagem do Centur. Esse livro é o resultado de aventuras pessoais e 30 anos de aprendizado ao lado de um homem especialmente capaz chamado João Luiz Duranz. Toda essa conjuntura é que faz a Sheila ferver. Você nunca ouviu falar na Sheila, mas quando ouvir, vai ter uma sensação de já ter ouvido, pois já existe em você a semente da credulidade. Esse livro é um dèja-vu pra qualquer um que tenha vivido em Belém na década de 80 e 90. E eu estou aqui para lhe dizer que sim, é tudo verdade.

1 - Arquimedes, um estuprador

Curioso que semana passada uma velha amiga me chamou para uma entrevista do tipo "mesa redonda" com estudantes. Vai dar merda, pensei. Mas era a Fátima Leal, uma ex-colega de faculdade gostosíssima, hoje uma dessas intelectuais do CNPq, doutora pela USP, e você sabe, nesses lugares se reza o mantra "comunicação digital", "o jornalismo impresso acabou", etc, etc.

– Fátima, minha linda, eu não manjo porra nenhuma disso.

- Não precisa manjar, garoto! (ela me chama de "garoto") Nós só queremos trazer pra universidade os depoimentos da gente, que fez história no jornalismo, e você tem um montão de coisa pra contar.

Como não desconfiar de um acadêmico que aparece vinte anos depois lá da puta-que-o-pariu? Saquei na hora a má-intenção, mas resolvi ceder à curiosidade mútua – eu tava nesse marasmo, aquilo poderia render qualquer coisa: cineminha, vinho seco, conduzir uma foda para depois... a Fátima era um tesão na época da faculdade. Além do mais, eu precisava de alguém para bater um bom papo. Estava sedento por isso. A despeito das divergências ideológicas, uma hora necessitamos bater um papo com qualquer um que saiba conversar. Fui; disposto a não entregar nada mais do que o decoro me permitisse.

A classe dela não se parecia nada com uma redação de jornal. Aliás, a classe dela não se parecia em nada com uma classe de jornalismo; não com as de 80. Certo: naquele tempo havia um bocado de fresco e bruxinhas à Paulo Coelho... mas a turma da Fátima tava mais para um GT de militantes gays que para uma turma de repórteres.

A desconfiança subiu e tilintou. Eles fizeram o velho número do repórter-amigo: te entopem de perguntas idiotas fingindo informalidade. É Godard mas é tosco. No fundo isso é apenas torcer para que o entrevistado, em algum circunlóquio, plante a armadilha na qual ele mesmo vai se encalacrar. E, acredite, os entrevistados sempre caem nessa.

- "Eu te amo, porra". Essa é a maior frase jamais dita no cinema nacional. – respondi a uma das perguntas pseudo-informais, uma que versava sobre a minha adoração pelos filmes da pornochanchada. A Fátima teria lhes dito que o meu TCC foi sobre isso?

Na dúvida, resolvi jogar o jogo: acendi um cigarro.

Três rapazes levantaram.

- Você não pode fumar aqui. – disseram.

- Ah, muito obrigado pelo aviso, vou me retirar.

Fátima interviu. Os veados chiaram. Fingi que estava sendo emparedado.

Sheila Use & AbuseOnde as histórias ganham vida. Descobre agora