Chapter 24

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Em Five Fingers, a comida dos cães terminou. Um velho índio desdentado ofereceu a Hal alguns quilos de couro de cavalo em troca do revólver Colt que, em sua cintura, fazia companhia ao facão de caça. Aquele couro, definitivamente, não servia como alimento. Fora arrancado da carcaça de um animal esfaimado que morrera seis meses antes e fora preservado pelo gelo. Estava congelado, duro como tiras de ferro galvanizado. Depois de engolido, transformava-se no estômago em uma massa de couro e pêlos, sem valor nutritivo e indigesto.
Como se atravessasse um pesadelo, Buck continuava a liderar a equipe. Quando conseguia, puxava o trenó. Quando não, deixava-se cair e permanecia no chão até que as repetidas chicotadas e os golpes de porrete o obrigassem a levantar. A magnífica textura e o brilho do seu pêlo haviam desaparecido. Os pêlos pendiam flácidos e enlameados, ou salpicados de sangue coagulado, por causa das surras de Hal. Seus músculos haviam se tornado cordas nodosas, as carnes tinham sumido, as costelas e os ossos ressaltavam-se no corpo inteiro. Era de partir o coração, mas Buck era indestrutível.
À semelhança de Buck, seus companheiros também haviam se tornado esqueletos ambulantes. Restavam sete deles, agora. Era tanta penúria, que haviam se tornado insensíveis à mordida do chicote e às pancadas do porrete. A dor dos golpes era surda e distante, justamente como as coisas que os olhos vêem e os ouvidos escutam, mas parecem passadas em outro mundo. Os cães não se encontravam nem meio vivos nem meio mortos. Eram simplesmente sacos de ossos onde fremia uma centelha de vida muito tênue. Quando uma parada era ordenada, arriavam na neve, como se estivessem mortos, e a centelha diminuía, empalidecia ou sumia de todo. E, quando o porrete ou o chicote descia sobre eles, punham-se de pé, cambaleantes.
Então, Billie, o bonzinho, tombou e não pôde mais se erguer. Hal já havia vendido seu revólver, então apanhou o machado e, com o cão ainda vivo, estirado no meio da trilha, golpeou-o na cabeça. A seguir, cortou sua carcaça, para removê-lo dos arreios, e jogou-a para o lado. Buck e seus companheiros assistiram a tudo e compreenderam que a mesma coisa iria acontecer com eles em breve. No dia seguinte, foi a vez de Koona, e sobraram apenas cinco: Joe, exaurido demais para continuar de mau humor, Pike, aleijado e mancando e não suficientemente consciente dessa vez para estar fingindo, Sol-leks, de um olho só, fiel ao trabalho e triste por estar sem a força necessária para puxar direito o trenó, Teek, que havia viajado menos do que os outros, naquele inverno, e justamente por isso, por estar menos cansado, era o mais surrado, e Buck, ainda o líder, mas sem mais poder nem disposição para impor disciplina, cego de fraqueza, na metade do tempo, conservando-se na trilha por instinto, pela sensação do chão sob seus pés.
Era uma belíssima primavera, mas nem os cães nem os homens prestavam atenção ao tempo que estava fazendo. De cada encosta, nos morros, descia uma queda-d'água, produzindo sinfonias cujas fontes eram invisíveis. Tudo ao redor estava dissolvendo-se, retorcendo-se, estalando. O Yukon lutava para libertar suas águas, rompendo o gelo. O rio devorava, por baixo, a camada sólida que o prendia, enquanto o sol o ajudava, por cima. Formavam-se bolhas de ar, fissuras se alargavam, e a cobertura gelada ia se desmanchando e sendo carregada pela correnteza. Com os cães caindo aos pedaços, Mercedes chorando, permanentemente aboletada no trenó, Hal praguejando inutilmente e Charles melancólico, com os olhos marejados de lágrimas, encontraram por acaso o acampamento de John Thornton, na embocadura do rio White. Quando se detiveram, os cães tombaram no chão, como que atingidos por um raio.

Assim que avistou John Thornton, Mercedes enxugou as lágrimas. Charles sentou-se num tronco de árvore para descansar. Seus movimentos estavam muito retardados, por causa de cãibras. Hal puxou conversa imediatamente. Thornton dava os últimos retoques num cabo de machado que ele próprio fizera, de um galho de faia. Limitou-se a assoviar e a escutar, respondendo monossilabicamente. Quando solicitado, dava conselhos. Conhecia de sobra essa espécie de viajantes - tanto que tinha certeza de que nenhuma de suas sugestões seria seguida.

-Avisaram-nos de que, rio acima, o degelo estaria atingindo as trilhas e era melhor que esperássemos -comentou Hal, diante de uma advertência de Thornton, para que tomasse cuidado com o degelo.
-Disseram também que não chegaríamos até o rio White nessas condições, mas aqui estamos nós! - concluiu com um ar de deboche.

-Contaram a verdade a você. O gelo está prestes a quebrar. Somente os tolos, com sorte cega, poderiam conseguir atravessá-lo, isso eu lhe garanto. Não arriscaria minha carcaça naquelas trilhas nem por todo o ouro do Alasca.

-Suponho que diz isso porque não se considera um tolo! - replicou Hal.  -Mesmo assim, precisamos alcançar Dawson.
Então, empunhou o chicote e berrou:
-Vamos, Buck! Levante-se e ande!
Thornton voltou a assoviar. Sabia que era tedioso intrometer-se entre um tolo e sua loucura. Além do mais, dois ou três idiotas a menos no mundo não fariam muita diferença.
Entretanto, a equipe de cães não obedeceu à voz de comando. Havia deixado para trás o estágio em que assopros do dono a faria erguer-se. O chicote relampejou sobre eles, exercendo sua missão impiedosa. John Thornton comprimiu os lábios. Sol-leks foi o primeiro a arrastar-se sobre seus pés. Teek seguiu-o. Joe foi o próximo, gemendo de dor. Pike fez um esforço doloroso, caiu nas duas primeiras tentativas e, na terceira, conseguiu ficar de pé. Buck nem sequer tentou. Ficou no lugar onde havia arriado. O chicote atingiu-o várias vezes, mas ele nem rosnou nem se defendeu. E várias vezes também Thornton fez menção de falar, mas mudou de ideia. Uma umidade aflorou em seus olhos e, como o espancamento continuasse, começou a andar impacientemente de cima para baixo.
Fora a primeira vez que Buck falhara, e só isso bastou para enfurecer Hal. Ele trocou o chicote pelo costumeiro porrete. Buck continuou recusando-se a mover-se, mesmo debaixo de uma chuva de golpes. Havia decidido propositalmente não mais obedecer. De forma vaga, quando alcançara a margem, pressentira o perigo eminente. Era mais forte do que ele. Sentira o gelo fino e quebradiço sob seus pés o dia todo. O desastre parecia tão próximo, e mesmo assim seu dono desejava ir ao seu encontro. Seu sofrimento era tão intenso, e seu pensamento já voara para tão longe, que os golpes já lhe doíam pouco. A centelha de vida que guardava dentro de si piscava, querendo apagar-se. E estava já tão fraca... Buck sentia uma estranha dormência, como se, de uma grande distância, alguma coisa informasse a ele que estava sendo surrado. A última sensação de dor abandonou-o, enfim. Ouvia ao longe o som do porrete batendo em seu corpo. Porém já não se tratava do seu corpo, parecia alguma coisa alheia a ele.
Então, subitamente, emitindo um grito inarticulado que mais parecia o urro de algum animal, John Thornton avançou sobre o homem que segurava o porrete. Hal foi arremessado para trás, como se tivesse sido atingido pela queda de um tronco de árvore. Mercedes gritou. Charles arregalou os olhos, ansioso, esfregou como pôde a vista umedecida, mas as cãibras não lhe permitiam sequer levantar-se.
John Thornton inclinou-se sobre Buck, lutando para recuperar o controle. Seu ódio o fazia tremer convulsivamente. Finalmente, conseguiu dizer:
-Se você bater nesse cão outra vez, eu o mato!

-Esse cão me pertence! - replicou Hal, recompondo-se e limpando o sangue da boca.
-Saia do meu caminho,  ou vai arrepender-se. Eu vou para Dawson.
Hal sacou da cintura seu enorme facão de caça. Mercedes agora gritava, chorava e ria, tomada por um ataque caótico de histeria. Num gesto rápido, Thornton atingiu a mão de Hal com o cabo do machado, fazendo-o soltar o facão. Ele próprio apanhou o facão e com dois movimentos firmes e rápidos cortou as correias que prendiam Buck ao trenó.
Hal já não tinha forças para lutar. Além disso, suas mãos estavam ocupadas com a irmã desmaiada e Buck, quase morto, já não lhe serviria para puxar o trenó. Alguns minutos mais tarde, deixavam a margem e desciam o rio. Buck escutou quando partiam e ergueu a cabeça para olhar. Pike era o líder, agora. Sol-leks era o volante e, no meio, iam Joe e Teek. Eles mancavam, cambaleavam, enquanto Mercedes ia no trenó. Hal era o condutor e Charles, aos tropeços, acompanhava-os logo atrás.
Enquanto Buck ainda os observava, Thornton ajoelhou-se junto dele e, com suas mãos calejadas, delicadamente examinou-o, procurando ossos quebrados. Nada encontrou, a não ser marcas de espancamentos, espalhadas pelo corpo, e sinais de um lastimável estado de desnutrição. O trenó já havia se distanciado cerca de meio quilômetro. Thornton e Buck o acompanhavam com o olhar, deslizando sobre o gelo. Subitamente, a traseira foi tragada por um sulco profundo, junto com Hal. Os gritos apavorados de Mercedes chegaram aos seus ouvidos. Charles ainda tentou recuar e correr, mas toda uma grande seção do gelo partiu-se. Homens e cães desapareceram no enorme buraco que se abriu, como se fosse uma boca bocejando. O rombo no gelo foi tudo o que restou à vista.
John Thornton e Buck trocaram um olhar:
-Você... Pobre coitado! -lastimou ele. E Buck lambeu sua mão.

O Chamado SelvagemWhere stories live. Discover now