O novo líder

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-Ah, eu não falei? Eu avisei que Buck valia por deux diables!
Foi o que disso François quando, na manhã seguinte, deu pela falta de Spitz e encontrou Buck coberto de ferimentos. Ele trouxe o cão para junto do fogo e foi apontando-os, um por um.

-Ce Spitz lutava como se tivesse saído do inferno! -comentou Perrault enquanto avaliava o estado de Buck.

-Mas Buck atravessou deux infernos! E aqui está de volta! Agora, vamos seguir viagem bien! Sem Spitz, pas de problemas! Estou certo disso!
Enquanto Perrault desmontava o acampamento e carregava o trenó, o condutor ajustava os arreios nos cães. Buck apressou-se a colocar-se no lugar anteriormente ocupado por Spitz. Mas François não lhe deu atenção e trouxe Sol-leks para a cobiçada posição do líder. Em sua opinião, Sol-leks era o mais indicado para o trabalho, mas Buck não se conformou e avançou furioso contra o outro cão, tomando-lhe o lugar.

-Hem? Regardez ce Buck! -gritou François chicoteando-lhe as coxas, com certo prazer. Matou Spitz e agora acha que vai ser o novo líder! Va-t'en! Saia daí, seu malandro! -berrou, mas Buck recusou-se a obedecê-lo.
Ele agarrou os pêlos do pescoço de Buck e, apesar de seus grunhidos ameaçadores, empurrou-o de lado. Então, repôs Sol-leks na posição do líder. O velho cão não apreciou nada a novidade -já havia demonstrado que temia Buck. Mais uma vez, Buck empurrou o velho husky, que na verdade não estava com nenhuma vontade de brigar.
François ficou zangado:

-Agorra, você vai ver! -gritou.
E retornou com um porrete nas mãos.
Buck recordou-se do homem do agasalho vermelho e, bem devagar, recuou. Dessa vez, não tentou investir contra Sol-leks, quando o cão foi colocado à cabeça da equipe. Buck rosnava e circulava afastado, fora do alcance do porrete. Não tirava os olhos do instrumento, pronto para defender-se, caso François tentasse usá-lo contra ele; havia se tornado um especialista em porretes.
O condutor chamou Buck, quando estava já pronto para atrelá-lo em sua posição de sempre, à frente de Dave. Buck recuou alguns passos. François seguiu-o, e mais uma vez Buck recuou. Após mais alguns movimentos semelhantes de ambos, François largou o porrete, acreditando que Buck temia levar uma surra. Porém Buck estava em motim declarado. Queria não apenas escapar às pancadas, mas também a liderança da equipe de puxadores. Era seu direito. Ele o havia conquistado e não se contentaria com nada menos.
Perrault veio ajudar. Buck continuou escapulindo, agora correndo por entre eles, por praticamente uma hora. Atiravam pedaços de pau nele, e Buck desviava-se. Amaldiçoaram-no, a seu pai, sua mãe e todas as gerações que o precederam, mesmo a semente que deu origem ao mais remoto espécime de sua raça, e mais cada pêlo do seu corpo e cada gota de seu sangue em suas veias, e ele respondia a tudo isso rosnando, sempre se mantendo fora do alcance deles. Não tentou fugir, mas permaneceu dando voltas e mais voltas pelo acampamento, como para demonstrar que, quando seu desejo fosse atendido, ele estaria disposto a comportar-se.
François sentou-se, coçando a cabeça. Perrault olhou para seu relógio e soltou uma praga. O tempo voava, e eles já deviam estar na estrada há uma hora. François coçou a cabeça novamente. Finalmente, balançou-a e sorriu envergonhado para o courier, que deu de ombros, demonstrando que haviam sido derrotados. Então, François foi até onde estava Sol-leks e chamou Buck.

-Abaixe le porrete! -ordenou Perrault.
François obedeceu. Buck veio correndo, triunfante, para se colocar finalmente no lugar reservado ao líder. Suas correias foram atadas, o trenó arrancou e, carregando os dois homens, avançou pela trilha do rio.
Ao terminar o dia, François já se convencera de que havia subestimado Buck. Até então, achava que nunca havia visto um líder como Spitz. No entanto, Buck demonstrava-se superior ao antigo líder da equipe e deixou tudo isso claro num curto período de tempo.
Buck era incomparável na maneira como se impunha e como fazia seus companheiros obedecerem-no. Dave e Sol-leks não estavam dando muita importância à mudança de líder. Não era da conta deles. Para eles, interessava apenas trabalhar, e trabalhar bem, nas trilhas. Desde que nada interferisse com isso, não ligavam para o que mais pudesse estar acontecendo. Por eles, até Billie, o bonzinho, podia ser o líder, desde que a ordem fosse mantida. O resto da equipe, sacudida pela indisciplina nos últimos dias, admirou-se com a autoridade de Buck sobre todos.
Pike, que seguia logo atrás de Buck e nunca empenhava um quilo a mais do seu peso contra os arreios, além do que lhe era exigido, foi severamente repreendido pela falta de cooperação. Antes de aquele dia terminar, estava puxando com mais vigor do que em toda a sua vida. Na primeira noite no acampamento, Joe, o azedo, foi punido com rigor, uma coisa que o próprio Spitz nunca conseguira fazer. Buck imprensou-o com seu peso, esmagando-o e mordendo-o até Joe começar a choramingar e a pedir por clemência.

Dessa forma, o ambiente na equipe transformou-se instantaneamente. Uma vez mais era como se fossem um único cão, inteiramente dedicado à marcha. Quando chegaram a Rink Rapids, receberam reforços. Teek e Koona, dois huskies. A rapidez com que Buck os adaptou ao trabalho tirou o fôlego até mesmo de François:

-Jamais houve um chien comme Buck! Ele deve valer uns mil dólares! N'est-ce pas, Perrault? -Perrault concordou.
A trilha estava em excelentes condições, bem prensada e dura, e não houve nenhuma queda de neve para atrapalhar. Não estava fazendo muito frio. A temperatura caiu para cinquenta graus abaixo de zero e permaneceu nesse nível por toda a jornada. Os homens revezaram-se na condução da equipe, mas os cães eram mantidos em atividade, com poucas paradas, até chegarem a Skagway.

O Chamado SelvagemWhere stories live. Discover now