Corredor da sorte

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Acordei por volta da uma da tarde sentindo o cheiro do almoço. Simone estaria na cozinha, preparando o mesmo prato que ela preparava todos os dias desde que firmamos esse contrato de decomposição mútua de espírito que é o nosso casamento. Espaguete, molho de tomate e frango empanado. Para ela e para o irmão, Laércio, um ovo frito. Meio-irmão, na verdade. Ele veio junto com o casamento.

Eles sempre foram próximos, próximos até demais. Você teria pena dele se o visse chorando na mesa de jantar com a boca cheia de espaguete, dizendo que eu o ofendi de alguma forma. A face do atraso mental e da melancolia, inconsolável. Quando isso acontecia, Simone sentava em seu colo, enfiava a cabeça do irmão no meio das tetas e balançava (a cabeça) para os lados, enquanto cantava cantigas infantis com uma voz melosa e enjoativa. Por isso eu não julgo o pai deles, que em algum momento da infância de Laércio decidiu enfiar uma picareta nas costas do filho e na cabeça da mulher, que não era a mãe de Simone. Infelizmente, o garoto ficou apenas paraplégico e, depois que o pai se matou, foi morar com a meia-irmã.

E foi por isso que entrei na cozinha naquela tarde e não me surpreendi ao encontrar irmã sentada no colo do irmão do outro lado da mesa. Quando me levantei da mesa para levar o prato sujo até a pia, Simone disse: Deixa aí que eu lavo. O problema é que não havia nenhuma cláusula sobre lavar louças no contrato. O trato era o meu dinheiro pela comida e pela companhia dela. Até o sexo deixou de ser uma atividade cooperativa.

Eu mesmo lavo, falei e eles cravaram seus olhares em mim e me acompanharam enquanto eu dava a volta na mesa. O que me surpreendeu não foi a nudez, mas sim o fato de que, no momento em que Simone elevou o corpo e deslizou para o lado, o pênis de Laércio olhou para mim e pareceu fazer uma reverência. Ereto, imponente, rindo da verdade aniquilada, uma crença que permaneceu comigo durante todo o casamento e que agora jazia no chão pisoteada e abusada sexualmente. Caralho, eu disse e não consegui dizer mais nada.

Agora, como você acha que essas coisas se resolvem? Com violência? Também acho. Minha mãe sempre me disse que não devemos maltratar mulheres, idosos e deficientes. Por isso decidi bater nos dois. Consegui acertar um soco na boca da Simone, o que é muito mais do que eu poderia esperar com aquela concentração de álcool no sangue. Quando consegui me estabilizar para poder chutar a cara do Laércio, senti seu abraço me imobilizando com uma força descomunal. Jesus, esses deficientes tem força nos braços. Você sabia? Acho que tem alguma coisa a ver com ficar girando por aí o dia inteiro. Bem que eu deveria ter comprado aquela cadeira de rodas elétrica que a Simone queria, talvez eu não teria apanhado tanto. De repente, Simone cravou as unhas nas minhas bochechas e logo comecei a sentir a pele sendo rasgada e o gosto de sangue em minha boca. Caí de joelhos e permaneci no chão da cozinha por horas, eventualmente caindo de costas e dormindo até a hora de ir para o trabalho.

"Hora de ir". Simone me acordou com um tapa. "Quero o divórcio."

Eu ri e senti a carne das minhas bochechas me dar outro tapa na cara.

"Simone..."

"Olha, acabou. Vai embora, você e essa barriga nojenta"

"Depois de todos esses anos?"

"Conheço ele há mais tempo que você"

"Mas foi bom... Digo, o casamento. Não foi?"

"O sexo com ele é muito melhor"

"Eu te amo, Simone. Esquece isso. Você disse que me amava..."

"Menti."

Cacete. A vadia estudou bem as respostas.

Acordei molhado e com uma dor se instalando em algum lugar da minha cabeça.

"Se serve de consolo, a urina é sua"

Mostra Ecos 6ª ediçãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora