Daniel na cova dos leões astrológicos

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RonielFelipe


Conto Um

DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS

Roniel Felipe


7h14

Acordou sorrindo e de bem com a vida. Até o seu espreguiçar foi diferente e malemolente. Pulou cedo da cama, cheio de gás e de peito aberto para o mundão. Não sabia dançar. Aliás, nunca soube, mas naquela manhã que prenunciava um dia quente, atacou de James Brown. O clima era perfeito como um comercial de margarina, embora não houvesse outras personagens felizes naquele cenário além de Daniel. Imitou, de forma descompassada, os passos do rei do soul no chão do banheiro molhado enquanto saía da ducha. Esfregou em zigue-zague a mão no espelho enquanto escovava os dentes. No centro do vidro embaçado pelo vapor, reencontrou uma feição cheia de regozijo. Não a via há muito, mas ela havia voltado naquele dia que estava apenas começando. Daniel estava certo de que aquele 4 de setembro seria venturoso e repleto de aventuras. "É hoje", pensava baixinho e ria.

Como de costume, se vestiu relativamente bem. Calça jeans, camisa bem passada e sapatos bonitos. Os calçados ganharam um brilho especial com os raios de sol do dia que abraçou Daniel, assim que ele pôs os pés na rua. O tempo poderia mudar bruscamente, o céu azul se transformar em cinza-chumbo e os raios de sol poderiam dar lugar para frias gotas de chuva, mas ele manteria seu humor intacto. Mesmo sabendo que era desafinado, cantaria com graça e estilo, assim como Gene Kelly o fez no clássico Cantando na chuva. A certeza de que seu dia seria fantástico era crescente a cada passada completa.


8h27

Como toda manhã, Daniel foi à academia de musculação. Buscava manter o equilíbrio entre uma mente sã e um corpo sadio, embora seus colegas vivessem a dizer que ele queria mesmo era ficar marombado para ter mais chances no jogo da conquista (acreditava que atrairia olhares das moças se chegasse à academia vestido como um jovem empresário descolado).

Seguindo sua rotina diária, o rapaz malhou forte, ignorando a tremedeira dos braços enquanto enfrentava o supino. Ao terminar a série de exercícios, voltou a se encarar no espelho. Era seu segundo momento Narciso. Notou que os bíceps estavam crescendo e sorriu. O script fluía muitíssimo bem até o momento em que Daniel percebeu que não havia água nos chuveiros da academia. Estava melado de suor e tinha que estar no trabalho às 10h, já que a máquina de bater cartão e sua exigência pontual eram uma constante em sua vida.

Sem recursos, restou-lhe apelar à técnica do banho de gato, muito utilizada nos tempos de molecagem para ludibriar a mãe quando lhe perguntava se já havia se banhado após brincar a tarde toda. Na pia, lavou o rosto e jogou água nos cabelos. Os próximos passos da higienização provisória foram passar o desodorante antitranspirante e pentear o cabelo para trás, substituindo o pente fino pelos dedos. Bem humorado, ignorou o contratempo. O autoconfiante estagiário na área de informática de uma biblioteca municipal estava pronto para trabalhar.


9h33

Dentre tantos ônibus que passavam em frente à sua academia, escolheu o circular 1.73. Foi aí que as coisas começaram a mudar. Simpático, Daniel adentrou o veículo. Político, acenou para o motorista, que suava em bicas com aquele calor e olhou Daniel com desdém. Porém, se a falta de água não mudara o humor do jovem, não seria aquele sujeito infeliz que iria mudar suas convicções. "Ema, ema, ema. Cada qual com seu problema", pensou em silêncio Daniel. Além de mal-humorado, o homem tinha também o pé pesado e pilotava o coletivo de forma deveras irresponsável. "Tu não tá carregando boi, não, motorista", foi a voz que veio do fundo, que se perdeu no ronco irado do motor que funcionava a todo vapor.

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