Capítulo 18

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Já se passaram três dias desde o incidente com o sangue - resolvi dar um nome mais sugestivo que O dia em que quase matei a garota por quem sou fascinado e um pequeno líder de uma alcatéia inexistente.

Nicholas soube me fazer sorrir nesse meio tempo. Aprendi a fazer biscoitos de gengibre e de nozes e bolo de chocolate. Assisti à filmes em preto e branco e super produções lançadas em 2013. Li mais de vinte livros. Alguns velozmente, outros humanamente.

O importante é que, agora, eu sei que não se pode enfrentar uma bruxa sem ter poder suficiente, não devemos deixar o bolo no forno depois de pronto porque, mesmo estando desligado, o calor preso dentro do forno pode fazer o bolo queimar e que uma garota pode ser estranha e ainda assim destruir uma cidade inteira! Ufa!

Ouvi mais músicas estranhas do que posso imaginar, fiz anjos de neve solitários quando sabia que Nicholas precisava de um descanso de mim. Mas não ultrapassei os dez metros de distância de casa. As vezes eu andava para o outro lado da floresta, e imaginava babadilhos rosados tomando aqueles galhos secos e cobertos de neve e flores nascendo entre os arbustos, no momento cobertos por uma grossa bruma. Pequenos veados e renas abusando do sol cálido em sua pelagem, satisfeitos e tão somente por apenas estarem vivos para saborear aquele momento.

Então imaginei Nicholas correndo por entre as árvores, veloz, um raio lívido cruzando e rodeando todo e qualquer obstáculo. Ele estava feliz em meus pensamentos, feliz de verdade, não solitário como é na realidade.

Agora, aqui na estufa, observando as flores dorminhocas, absorvendo a luz do falso sol, regando-as e cantando em sussurros ininteligíveis para as únicas coisas que podem me ouvir, pareço até mesmo comum, normal. Como se aquele dia em que deixei-me ser sugado até a última gota e intoxicado com essa droga de eternidade nunca houvesse existido.

Abri a grande porta de madeira da estufa e saí para a mata branca e calma.

Meus pés causam ruídos sonoros e ocos ao pisar na neve. É como pisar em centenas de cacos de vidro, tilintando sob meu corpo grande e um tanto quanto pesado.

Meu pai nunca me imaginaria aqui, em um lugar que não fosse cercado por grandes muros e gigantescos portões fechados. Sempre fui como seu pequeno passarinho, deixado em gaiolas enquanto ele sai, sendo alimentado e educado por ríspidos estranhos.

Lembro-me muito bem de quando ele atravessou os grandes portões negros com uma mão em meu ombro e a outra pende ao lado do corpo.

- Aqui será seu novo lar - disse-me Senhor Graystone, o dono do internato.

- Isso não é um lar, é uma escola - eu havia sussurrado, mas meu pai apertou meu ombro com força.

Olhei para seus grandes olhos verdes, tão desprovidos de emoções - que eu tive a sorte de não puxar. Lembro-me muito bem do que ele disse:

- Você irá morar aqui até quando eu quiser!

Então ele largou minhas malas ao meus pés, virou-se e partiu sem dar-me quaisquer ordem ou esperança de que um dia voltaria para casa, para ver mamãe.

O único amigo que eu tinha não era exatamente um interno na Instituição Graystone. Ele era o filho de uma das empregadas do colégio. O garoto, William Peterson, só aparecia à noite, quando eu me atrevia a burlar as normas e lia na varanda ampla do andar dos professores. William sempre me trazia um pedaço do bolo que era feito especialmente para o diretor Lincoln Van Der Graystone.

William era magro e um tanto quanto pálido, tinha a mesma idade que eu, mas era muitos centímetros menor. Seus cabelos longos e cacheados carregavam um tom bonito de castanho, como os cabelos de Brie. E ele sempre tinha aquele louco desejo de viver para sempre e ser sempre jovem como o Peter Pan ou de ser lembrado para sempre, de preferência por um grande rei.

- Ei, Ace Cream, você está aí? - ele me chamava, sempre dizia que meu nome lhe lembrava a sorvete de baunilha e chocolate. - Eu trouxe o Super Lincolns Cake!

William parecia um raio prezo numa garrafa, se debatendo entre as paredes de vidro.

- Eu estou aqui! - gritei balançando as cortinas.

Em um segundo William estava lá, com um prato creme decorado com pequenas luas em azul e o brasão do colégio em vermelho sob duas gorduchas e saborosas fatias de bolo.

- Hoje o Super Lincolns Cake tem cobertura! Acredita que o grande Lincoln pediu cobertura? - caiamos numa gargalhada profunda e alta.

- E de que é a cobertura? - perguntei entre um riso e outro.

- De chocolate! - ele retirou o fino lenço que guardava as fatias de bolo e um pouco da cobertura ficou colada no tecido branco.

Nós sorrimos um pouco mais, lambendo a cobertura, e nossas risadas ecoavam pela instituição silenciosa e a tornava barulhenta uma única vez no dia.

Não demorava para ouvirmos os passos da inspetora Carrancuda Nicholson. Era assim que todos a chamavam. Nicholson era baixinha e roliça, os cabelos loiros, quase brancos, estavam sempre presos em um coque apertado e impecável na nuca. Ela gritava alto de mais, de modo que nossos ouvidos zuniam sempre que ela se calava, e estava sempre irada. Nicholson tinha um sotaque estranho que eu só podia identificar por sueco, no entanto ela não tinha sobrenome sueco e ninguém sabia seu nome.

- Quem estar aí? - ela gritava, com as palavras se misturando sobre a língua, ladeando as prateleiras enquanto William e eu ríamos sufocados atrás das cortinas e comíamos nosso Super Lincolns Cake.

Quando ela se afastava, corríamos para a cozinha e William escondia o prato, já limpo, no armário do diretor. Então aprumavamo-nos em seu quarto atrás do grande celeiro e eu lia uma história em voz alta até ouvir o pequeno William roncar. Seu cabelo encaracolado caindo sobre os olhos extremamente claros era tudo o que disfarçava suas olheiras fundas e seu rosto magro.

William Jiminy Peterson morreu aos quatorze anos, de leucemia.

Eu não pude visitar seu túmulo, nem dizer um último obrigado ou adeus. Passei a visitar sua mãe, Cloe Peterson. Ela me contou sobre a doença dele e como era difícil pagar os remédios e que seu marido, Louis, as vezes precisava roubar para que eles mantevessem William vivo e tão feliz quando ele me parecia - naqueles tempos não haviam tratamentos. Então ela sempre me dava uma fatia do Super Lincolns Cake e, antes de me levar até meu quarto, ela me dava um beijo no alto da testa e as vezes me chamava de William e pedia desculpa e chorava um pouco.

Ver toda essa neve, confinando os galhos das árvores dentro de seu corpo branco e frio, me faz lembrar de que William ganhou o que queria. Ele está sendo lembrado, não por um rei, como sonhava, mas por um amigo, por mim, por um ser que supostamente viverá para sempre.

No fim, o desejo de William foi concedido - erradamente - à mim. E eu não desejo uma vida eterna à ninguém!

Vida eterna significa dor eterna.

Isso seria uma injustiça ao pequeno William, assim como é para nós.

Primavera & Chocolate (livro um)Where stories live. Discover now