A Última Música

VII

Já podia se observar a penumbra da noite pelas janelas do carro  e sentir o cair da temperatura, fazendo-a encolher no encosto do veículo. Faltava pouco para chegarem em casa e, apesar de toda a adrenalina que corria ainda pelo seu corpo dos momentos anteriores, Miranda sabia que havia algo ainda a ser feito.

— Precisamos comemorar. - disse ela endireitando-se e abrindo um sorriso cativante para Houston.

— Claro, minha linda. Sou todo o seu, o que deseja para hoje?

— Pensei em bebermos algo forte e relaxarmos um pouco, nós merecemos depois de tudo - piscou para ele e levou sua mão esquerda para a coxa do seu parceiro, fazendo um leve carinho ali.

Houston olhou de canto para ela e abriu um sorriso safado, já imaginava a longa noite divertida que teriam. Parou o carro em um supermercado 24horas que ficava a beira-estrada e pediu a garota que o esperasse enquanto ele comprava as coisas para a festinha de mais tarde. Passado uma meia hora, ele voltou com uma garrafa de vinho na mão e um pacote de camisinhas na outra, estava feliz e animado.

Depois de tanta espera e de ter que lutar contra a fúria implacável que lhe dominava ao ver Miranda com outros homens, finalmente ela seria completamente dele. A noite de hoje seria o marco para a nova vida que teriam. No outro dia deixariam tudo para trás, em busca de uma cidadezinha distante em que pudessem viver felizes para sempre com 2 filhos, um gato, um cachorro e tudo mais que o destino pudesse lhe proporcionar. Só tinha olhos para a loira esbelta dos olhos azuis vidrantes, não conseguiria viver sem ela, era o seu oxigênio, amava-a tanto que chegava-lhe doer o peito.

Entrou no carro, entregando os itens para Miranda e inclinando-se para lhe dar um beijo apaixonado. Levou sua mão até a bochecha da garota, fazendo carinhos e a outra enfiou entre seus cabelos, dando leve puxadas. Começou intensificar o momento, em um ímpeto desejo de possuir aquela mulher ali mesmo naquele estofado, porém sentiu a mão espalmada de Miranda tocar o seu peito, lhe afastando. 

— Aqui não, querido. Vamos deixar a festa para nossa casa. - falou ela mordendo seu lábio inferior de forma sedutora.

Houston piscou e voltou-se para o seu banco, colocou a chave no carro e deu partida para chegarem o quanto antes à casa. Não tardou trinta minutos e já haviam chegado, colocaram as coisas na bancada da mesa, jogando fora os sacos vazios. Miranda foi direto para o banheiro para tomar uma ducha enquanto Houston pegava as taças e preparava o ambiente.

Ela aproveitou o momento sozinha para lavar a sua alma, cada gotícula de água que percorria o seu corpo era uma lembrança que ela escolhia agora deixar para trás. Ficou debaixo do chuveiro por um tempo, escorou uma mão na parede e abaixou a cabeça ofegante. Só mais uma coisa. O último passo para a sua liberdade. Era isso que martelava na cabeça dela enquanto terminava seu banho e saía do box.

Depois de enxurgar-se e vestir sua roupa, foi até a sala, que estava escura, vendo uma mesa arrumada com duas taças de vinho, uma de cada lado, e uma vela que ambientava o local. Houston havia preparado tudo para uma noite romântica entre eles.

— Tome um banho quente, amor. Relaxe e volte para podermos curtir a nossa noite - falou ela abraçando-o de surpresa por trás, sussurrando em seu ouvido.

— Já volto. - ele virou a cabeça um pouco para dar-lhe um beijo rápido e foi em direção ao banheiro.

Era a oportunidade perfeita para a garota, aproveitou que estava sozinha e correu para pegar em sua bolsa o potinho que estava guardado há alguns dias ali. O vendedor havia dito que cinco miligramas seria o suficiente, mas ela não quis arriscar para ver. Colocou o vinho na taça, abriu as cápsulas que estavam no vidro e derramou o pó dentro do líquido, pegando uma colher para mexer o conteúdo. Depois colocou o pote e a colher em sua bolsa, não deixando nenhum vestígio do que houvera ali.

Tudo perfeitamente orquestrado, o tempo exato para ouvir o barulho do chuveiro cessar e os passos de Houston pelo quarto. O rapaz logo entrou na sala, apenas de bermuda, com seu tronco definido desnudo. Por um instante, Miranda lambeu os lábios e até pensou em fazer uma última despedida, deliciar do corpo que tanto a satisfez pela última vez, mas logo tratou de voltar atrás. Melhor seria dar um fim nisso logo.

Estendeu a mão para ele, com um sorriso singelo no rosto, convidando-o para sentar com ela à mesa. Seu parceiro inclinou-se, beijou sua testa com carinho e sentou-se ao seu lado, ao mesmo tempo que ela empurrava-lhe a taça com o vinho que havia preparado.

Houston ergueu a taça até a boca sob o olhar atento de Miranda, mas antes de dar um gole, sorriu para ela, descendo a taça novamente e a depositando sobre a mesa. A garota ficou confusa com o gesto, a expectativa já percorria as suas veias,  estava tensa esperando que ele bebesse e temerosa que ele estivesse desconfiando de algo.

— Eu te amo tanto, Miranda. Ao te ver aquele dia na clínica pela primeira vez... você não sabe como eu desejei que não fosse como aquele bando de loucos que eu tinha que lidar todos os dias. Quando vi o pavor nos seus olhos, com medo de estar naquele lugar...eu só sabia que precisava proteger-lhe pelo resto da vida. Eu fiz e faria ainda mais por você. Eu acordo, como e durmo com seu rosto na minha mente, Miranda. É como uma obsessão que eu não posso evitar. - falou inclinando-se para ela enquanto acarinhava o seu rosto.

A garota terminou de fechar o espaço entre eles, entreabrindo os lábios e permitindo que lhe desse um último beijo, era o seu adeus.

— Também te amo, Houston. - afastou-se um pouco e pegou sua taça de vinho, dando um gole e incentivando-o que fizesse o mesmo no dele.

O rapaz tomou a bebida enquanto contemplava o rosto sereno de Miranda que o observava. Achava que recebia o mesmo amor que dedicava a garota, os olhares que ela dava, toda vez que a percebia, parada, o fitando, iludia-se imaginando que o mesmo fio que o ligava a ela era recíproco.

Já havia tomado praticamente toda a bebida e não tardou muito a sentir algo estranho em seu corpo. Seus membros pareciam que não estavam respondendo da mesma maneira, sentiu seu pulmão comprimindo, uma pressão intensa na garganta, dificultando-o de respirar.

—  Miranda... - soou fraco despencando da cadeira.

Viu a garota levantar-se e olhar para ele com uma expressão satisfeita. Franziu o cenho sem compreender e estendeu a mão para tentar alcançá-la, ela deveria estar desesperada, mas ele logo percebeu um pequeno sorriso contido ameaçar sair dos seus lábios.

— O que você fez? - perguntou em uma voz estrangulada por causa da paralisia que o acometia.

— Houston, temos um problema. - falou abaixando-se ao lado do seu corpo que estava caído no chão. - Não preciso mais dos seus serviços, você sempre foi para mim apenas uma peça descartável do meu tabuleiro. Um inútil, um simples nada.

A consciência já começava se esvair e a coloração de sua boca se transformava em um tom azul arroxeado. Sentia alguns espasmos involuntários pelo corpo e uma baba que escorria pelo canto. Todavia, conseguiu juntar forças o suficiente para fazer uma última pergunta antes de perder o controle por completo da sua mente.

— Por que?

Miranda agachou-se equilibrando com as mãos em seus joelhos e inclinou-se  para que ele pudesse compreender claramente suas palavras antes da morte.

— Houston, Houston... - estalou o céu boca - Até hoje você não se ligou que as aparências enganam? Eu te usei enquanto me era útil. Durante o tempo que você me entregava o seu coração, eu apenas usava o que me melhor aprouvia. Finalmente eu estou livre e você é meu último descarte antes que eu siga meu novo destino. 

E foi a última coisa que ele escutou. Além de perder a vida, levava para a outra dimensão um coração quebrado pela mulher que amava, pisado e destruído como um objeto qualquer. Deu tudo de si por ela, a salvou e a protegeu em todo o tempo que estiveram juntos e agora, era o fim.

Miranda apenas sorria, alegre e satisfeita. Estava tudo terminado. Não havia mais vítimas, nem pai e nem Houston. Nada que a ligasse a seu passado macabro.