Tempo corrido

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Três meses...

Esse é todo o tempo que ainda me resta para estar por aqui. Eveline afirma que me darei bem em qualquer coisa que resolva fazer, que ter aproveitado o meu tempo livre durante os feriados e me afundado nos estudos, mesmo que por prazer para mim, iria surtir grandes efeitos na hora de conseguir um bom emprego ou entrar em uma universidade, quando decidisse o que quero fazer no futuro. Queria eu ter tanta confiança no meu potencial. Como poderei ser bem sucedida em algo, se mal saio do internato? Confiar no meu potencial seria a mesma coisa que agarrar-me a algo que nem ao menos sei se existe.

— Ei mocinha, volte aqui! — Nial, como tem acontecido nos últimos dias, estrala os dedos tirando-me dos meus devaneios. — Darla minha flor, sei que está preocupada, mas se realmente quer ajudar, precisa se concentrar.

Há um ano consegui meu diploma no ensino médio, como ainda não sei ao certo o que desejo fazer, optei por investir ainda mais no estudo de línguas, já sou fluente em algumas, felizmente tenho facilidade para aprender. Mas o primeiro passo é encontrar um lugar para morar, enquanto isso, tenho ajudado em tudo que posso no internato, desde fazer compras no mercado a dois quarteirões, até ser uma auxiliar nas aulas.

Começo a perceber que talvez seja ajudar aos outros o que eu quero para o futuro, desde os pequenos até os adolescentes, como minha melhor amiga maluca.

Bella, veio parar aqui unicamente por ser a filha ilegítima de um grande empresário do ramo alimentício. Seu pai constrangido pela descoberta da sua infidelidade a mandou para longe dos olhos da mídia e da esposa. Sua pobre mãe, uma jovem que com apenas dezenove anos havia se envolvido com o chefe sedutor, morreu quando ela tinha apenas sete anos, fazendo assim o grande segredo vir à tona.

Sua chegada foi uma bênção para mim, me senti nas nuvens por ter alguém com quem compartilhar tudo, sempre quis uma irmã, já que as várias garotas chegavam e partiam constantemente, só Bella permanecia além de mim, o que nos permitiu criar laços reais de amor e companheirismo, mesmo ela sendo um pouco, digamos, xereta, sempre sabendo de tudo e sobre todos, até mesmo o vizinho gato que me faz suspirar.

— Hã-hã. — Nial está me olhando com aquela cara de reprovação, hoje não é meu dia mesmo.

— Desculpe-me!

— Meu bem, por que não vai até a sala de Eve e pergunta se ela precisa da sua ajuda em algo?

— Tem certeza? — Apesar de não estar sendo de muita ajuda, gosto de estar em volta das pequenas, me fazem sentir responsável.

—Sim, posso dar conta das ferinhas por mais uma hora!

Bom, não tenho mais o que argumentar, vou em direção à porta quando sinto sua mão no meu ombro.

— Não fique assim, florzinha, sei que se sairá bem e tem a mim e Eve. Sabe que pode ficar em nossa casa! — Ah, esqueci de dizer o motivo de tê-los como pais, eles são casados e sempre fui a sua protegida, desde o início me fizeram sentir que tenho uma família, mesmo morando em um internato.

Faço que sim com a cabeça e saio da sala o mais rápido possível, encosto-me na parede antes de entrar na sala de Eveline, sei que ela perceberá minha apatia e falará o mesmo que Nial, só não quero ser um peso para ninguém. Quero descobrir como me virar e sobreviver sozinha, ser capaz de direcionar minha vida sem parecer uma menina assustada e talvez um dia já segura de mim mesma, alguém olhe para mim, mesmo esse alguém não sendo meu vizinho.

Mesmo ainda sendo uma interna, tomei para mim algumas obrigações, minha tarefa preferida é a que faço nesse momento. Após conversar com Eve, ela acabou me convencendo que estava na hora de fazer compras para o internato, principalmente as guloseimas das pequenas.

Nada me anima mais do andar pelo mercado, é em momentos como esse que enfim saio para além das grades do Blue Light. É bem verdade que andar cerca de seis quadras de onde moro não é o que possamos chamar de liberdade, porém, é o que tenho e ainda assim é mais do que qualquer outra interna tem. Mas pensando bem, trocaria minha pequena liberdade por algo que sempre almejei, uma família que me amasse e não me largasse, afinal, saber que se tem um ninho para voltar, vai além da liberdade, é amor. Isso sim me faria feliz.

Estive tão absorta na minha tarefa de andar pelos diversos corredores do mercado, seguindo à risca a lista feita por Joana, nossa cozinheira, que só me dou conta que cai uma torrente do céu quando já estou de saída, é isso que fazer compras faz comigo, perco a noção do tempo que gasto olhando cada produto.

Como o mercado trabalha com o sistema de entrega em domicilio, trago comigo apenas alguns itens de uso pessoal meu: absorventes, meu shampoo preferido com fragrância de baunilha, além de outras miudezas. Olho o céu que parece estar extremamente irritado nos trouxe uma chuva daquelas.

"Muito bem Darla! Isso é para você aprender a andar sempre prevenida!"

Resmungo irritada comigo mesma por não ter dado ouvidos a Eve, que por mais de uma vez me lembrou do guarda-chuva e eu desligada, não o trouxe. Só que, não posso mais me demorar aqui, preciso volta ao internato, resolvo enfrentar a tempestade mesmo assim, só que eu não tinha noção do quão forte estava a tempestade até me arriscar enfrentá-la.

É quase impossível andar com toda essa água, a rua está praticamente alagada, começo um novo esquema de passadas, duas para frente e quatro para um lado, depois para o outro, na tentativa de fugir um pouco de todo aguaceiro que escorre pelos dois lados da rua.

No fim acabo me divertindo com o meu jeito meio louco de andar na chuva, molhada como estou, minha roupa encharcada. Deixo-me levar pela sensação da chuva que cai sobre mim, como uma menina de cinco anos, me divirto na água que escorre, rindo enquanto fujo da lama andando de um lado ao outro.

Estou no meio da rua sorrindo quando tudo acontece mais rápido do que eu possa reagir. Entre uma risada e outra, escuto o barulho da moto se aproximando, se não estivesse tão distraída teria como escapar, mas estou de cabeça baixa sorrindo sobre alguma lembrança esquecida na minha mente, de um dia chuvoso na minha infância, com meus pais, — se é que eram eles mesmo, — não sei se é lembrança real ou apenas de um sonho. Sinto mais do que vejo o que acontece.

Minha sacola é atirada dez metros de distância à frente com o impacto, me jogando de volta a realidade enquanto meu corpo flutua no ar sem ter onde possa me agarrar e evitar a queda. Sei que durou milésimos de segundos, mas para mim foi uma eternidade, do momento em que fui atingida até cair no chão enlameado, batendo primeiro meu quadril, logo em seguida a cabeça.

Tudo ficou turvo ao meu redor, pisco várias vezes atrás de um ponto para centralizar meu foco, quando encontro um par de olhos cinzas me olhando assustado. É ele, meu vizinho, minha cobiça silenciosa. Sorrio ao pensar em como esse momento seria mágico, se não fosse trágico e até mesmo cômico, devido ao ocorrido.

O ponto de luz se apaga e fecho meus olhos ainda com a imagem do seu olhar

O  Vizinho...  Desgustacao (Na Amazon)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora