2. O Médico e o Monstro.

810 141 76
                                    


Em alguns dias, ele trazia as crianças à luz. Em outros, atirava-as na escuridão.

Naquela manhã de terça-feira, ele se preparava para cumprir sua primeira função – a normal, a aceita pela sociedade, a que o fizera ganhar uma grana preta. Abriu os olhos em sua casa de três andares e encarou o ventilador de pás negras que girava preguiçoso no teto. A luz do sol entrava pela janela aberta e era filtrada pelas cortinas brancas, derramando-se leitosa na cama de casal onde ele se deitava sozinho. Acordou às sete horas e zero segundos, sem precisar da ajuda berrante e indiscreta de um despertador. Seu corpo sempre funcionara assim: pontualmente.

Às sete e cinco da manhã em ponto, ele estava debaixo do chuveiro. Às sete e vinte em ponto, vestia a roupa que usava para trabalhar no hospital. Às sete e meia em ponto, sentava-se à mesa da cozinha, tomando uma xícara de café quente e lendo o jornal, enquanto escutava a lareira artificial de tela LCD estalar na sala. No sofá de couro escuro, seu jaleco branco repousava impecável, sem uma dobra ou amassado sequer, trazendo bordado no bolso do peito as palavras: Doutor Peter Bowden, Chefe da Equipe de Obstetrícia. E se isso não era uma prova do senso de humor bastante peculiar de Deus, então ele não sabia o que era. Bowden podia imaginar o Todo-Poderoso em cima de um palco montado nas nuvens, com um microfone na mão e protagonizando um tipo de stand-up celestial, dizendo para seus anjos: "ei, gente, vocês lembram daquela vez em que eu criei um serial-killer de crianças que fazia partos?" Onda de risos. Ha-ha-ha!

De morrer de rir, realmente. Exceto que, com o passar dos anos, a situação foi perdendo sua tangibilidade cômica e passou a parecer a Peter Bowden uma espécie distorcida de expiação. Uma compensação. Algo a ver com o equilíbrio das balanças do Universo. Ele matava, mas ajeitava as contas da melhor maneira possível ao trazer crianças à vida, coisa na qual era bom. Muito bom. Se não fosse, não teria chegado à posição respeitada que ocupava no Hospital Geral de Oldwheel. Sim, já passara por sua cabeça que ele podia ser também total e completamente insano, e ele nunca descartara de todo a possibilidade – era um médico, caramba, e sabia como o cérebro humano às vezes nasce com um defeito aqui ou ali. Com uma mancha tão escura quanto o café que ele tomava. E essa tal mancha tinha caprichos próprios: ou você os obedecia, ou acabava metendo uma bala na boca.

Ele escolhera a primeira opção. Obedecer. Saciava sua vontade e passava seus dias somando vidas ao mundo para compensar por aquelas que subtraía. E, em sua defesa, ele gastava muito mais tempo somando. Matara apenas algumas poucas vezes, ao passo que perdera a conta de quantas crianças ajudara a nascer.

O relógio na parede de sua cozinha impecavelmente arrumada marcou oito horas. Peter Bowden olhou para os ponteiros e um sorriso de dentes brancos surgiu em seu rosto. Se tudo tivesse corrido como o planejado – e Bowden não tinha motivos para pensar o contrário – o detetive Robert Dylan recebia naquele instante o presente que ele enviara.

- Feliz aniversário, Bob – Bowden brindou à cozinha vazia e tomou um gole de sua xícara.

Ele levantava-se da bancada da cozinha quando o telefone tocou. Primeiro, pensou que fosse a empregada ligando para avisar que se atrasaria para a faxina diária, mas então leu o nome no identificador de chamadas. Suspirou fundo e atendeu.

- Pete? – disse a mulher que estava lá em Paris.

- Oi, Anna – como sempre acontecia durante aquelas conversas, Bowden sentiu o anelar esquerdo coçar. Aquele dedo que, até quatro meses atrás, ostentava uma aliança dourada com o nome de Anna gravado. – Quem mais seria?

A Mãe de Todos Eles.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora