II: Presente

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Não obtive bons resultados naquele dia inteiro. Sai, caminhei pelos lugares por onde costumava caminhar, fui a bares, frentes de locais comerciais, qualquer área onde pudesse haver um bom lugar escuro onde levar uma vítima, mas não encontrei nada. Voltei à noite, tão tarde que meus pais não se deram ao trabalho de esperar, um hábito que, aliás, eles já haviam abandonado quase que por completo.

Destranquei a porta da frente e entrei no momento em que o relógio marcou três horas da manhã. Ótimo. Eu tinha dezenove anos a três horas e sequer tinha notado.

Fui até a geladeira, peguei o vinho já aberto e joguei um pouco num copo. Fiz um brinde imaginário a mim mesma, soando tão irônica que me senti um pouco cretina, e fui bebendo devagar, como que para fazer o gosto durar mais – algo que eu não fazia com muita frequência quando o assunto era bebida. Lavei o copo e subi para o meu quarto, cansada e frustrada. Deixei minha mochila cair num canto do quarto com um estrondo e praticamente me joguei na cama.

Tinha sido um dia difícil. Logo o primeiro dia do ano já fora um dia de azar. Quem sabe as coisas melhorassem hoje, já que era meu aniversário.

Eu estava quase dormindo quando escutei vozes pela minha janela. Dois homens conversando? Eu estava bastante sonolenta, é claro, mas eu ouvia claramente aquelas vozes, ainda que não soubesse dizer o que elas estavam dizendo. Me ajoelhei na cama e afastei as cortinas.

Não precisei forçar muito meus olhos pra enxergar. A casa ao lado, há tanto tempo vazia, estava ocupada agora. Eu vi as luzes se acendendo ao longo das janelas do primeiro andar e escutei passos no silêncio da noite, as vozes se tornando mais claras.

Então eu ouvi uma porta se abrindo e um pouco de luz entrou no cômodo da casa cuja janela ficava exatamente de frente para a do meu quarto. A fresta de luz aumentou e a sombra de um homem apareceu, mas ao contrário do que eu estava esperando, ele não acendeu a luz para iluminar mais aquele cômodo. Ao invés disso, pareceu entrar e sumir na escuridão.

Forcei meus olhos para tentar enxergar além, tentar encontrar o tal homem escondido pelas sombras. Estava curiosa para ver meus novos vizinhos; era bom ter alguma novidade na qual pensar, ainda que fosse durante a madrugada. Aquela casa estivera desabitada por tanto tempo que eu não conseguia imaginar quem seria maluco o bastante para se interessar por ela.

Tomei um susto quando um rosto apareceu na janela. Nada nele se fazia ver além dos olhos azuis, brilhantes, tão curiosos quanto os meus próprios deviam estar. Puxei as cortinas e levei as mãos à boca, o pulso acelerado pelo medo que não tinha nenhuma razão aparente.

Me deitei e me cobri até a cabeça. Era cômico uma caçadora como eu, que matava monstros, presenciava coisas horríveis e não temia por nada, sequer pela própria vida, se comportar daquela maneira, mas era assim que eu me sentia. Assustada. Intimidada. Aqueles olhos ainda estariam me observando? Se sim, o que estariam vendo? Teriam notado o pavor que percorreu o meu rosto quando eu os encarei?

Por alguma razão, eu sentia que sim.

[...] Eu segui aquela mão, tocando-a de leve com as pontas dos dedos para ter certeza de que era real. A mão vinha de um braço gelado, com mordidas horríveis ao longo dele. E o braço levava ao tronco, e o tronco à cabeça, e dali ao rosto horrorizado, porém ainda maravilhosamente lindo que eu não queria ver naquela hora.

Grito sem perceber. Lágrimas caem fora de controle, sem que eu tivesse plena consciência de que eu ainda era capaz de expressar qualquer emoção. Não há som, não há cor, não há motivos para nada além da dor que me possui, passa por cima de mim, me impede de pensar [...]

Quando meus olhos se abriram de novo, eu não estava na minha cama; estava caída ao lado dela, a cabeça encostada no chão frio, o travesseiro pendendo ao meu lado, todo o meu corpo enrolado nas cobertas como algum tipo de salsicha ridícula que me mantinha presa.

Vermelho SangueWhere stories live. Discover now