Capítulo 7 - Eu recebo Tempo

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A terra cinzenta cobriu todos os lugares. Estela do alto da torre de um caste-lo observava o horizonte. Onde estava o Hospital? Salomão? Suas mãos cansadas e confusas seguravam no parapeito da torre e o vento desman-chava seu penteado prateado. Os lábios murchos esboçavam a surpresa e os olhos embaçados, acinzentados, estavam fixos. O que havia aconteci-do? Sonhava?

— Nasce o dia para Nada — disse alguém que se materializou ao lado de Estela. — O meu último o primeiro dela.

Ela estava ofegante, cansada e mancava. Tinha os cabelos brilhantes, curtos, a pele suja de carvão. O vestido, grafite e em farrapos. Os ombros, os braços quase completos, dedos e os joelhos possuíam queimaduras. Algo havia lhe ferido.

— Que houve com você? — perguntou Estela aproximando-se com a velocidade que a idade lhe permitia.

— O fim — a criatura escorou-se na velha senhora.

Eram amigas? Sabia o seu nome. Era Aurora. Estela tentou explicar:

— Quando dei por mim estava observando este horizonte desolado. Pouco antes estava no Hospital com Salomão!

Aurora pouco compreendia. Continuou dizendo sobre o que lhe afligia:

— Ele veio, Estela. O Fogo devorou cidades e pessoas, a minha família. Sobrevivi para esta última manhã. Para o nosso último encontro.

— Isso não pode ser. Não entendo o que está acontecendo.

— Não há muito tempo para explicações. Existe uma chance de impedir este derradeiro amanhecer e o Nada.

— Você está ferida, precisa de cuidados!

— Não se preocupe comigo, apenas me escute.

Aurora dobrou os braços de forma a parecer que segurava um bebê. Neblina se formou entre os braços da deusa-manhã e uma criança apare-ceu. Ela o virou de bruços, com cuidado, e girou a pequena chave dourada que ele tinha nas costas no sentido horário.

— Este é o meu filho, o Tempo. Foi com ele que o Fogo destruiu o mundo e é com ele que você vai salvá-lo.

— Tempo? Um bebê?

— É isso que você ouviu. Dou-te meu único filho para que impeça o acontecido.

— É impossível o que me pede. Não se pode impedir o passado, Aurora.

Manhã fez uma careta de dor. Estela observou que as queimaduras espalhadas pelo corpo de Aurora aumentavam mesmo estando longe do Fogo.

— Você já devia ter aprendido que tudo é possível, dado o tempo que vive aqui. Seus encontros com Sofia e Salomão deveriam ter-lhe ensinado.

— Eles pouco me dizem.

— Meu filho é a chave que eles usam. Volte e mude. Há muito o Fogo viaja pelos acontecimentos e muda a história ao seu favor. Foi assim que adquiriu poder suficiente para incendiar o mundo. Quero que faça o mesmo, mas para salvá-lo.

— Aurora, tudo isso é muito complexo para o meu entendimento.

— Não se preocupe — Aurora sorriu com os olhos brilhantes por conta de lágrimas. — Encontrará todas as explicações.

Manhã estendeu os braços e passou o bebê para os de Estela.

— Tome. Eis o meu filho.

Quando a velha mulher recebeu a criança algo estranho ocorreu. Foi arrebatada violentamente daquele lugar por uma força poderosa. Aurora ficou distante, viu-a cair de joelhos. Quis que aquilo parasse para que pudesse ajudar a amiga, mas não tinha domínio sobre o fenômeno. Os olhos mostravam-lhe a imagem de Manhã distante e caída. Sons indecifráveis se faziam em seus ouvidos.

Pés descalços se fizeram ao lado do corpo de Aurora. Tinta negra pingou sobre as pedras do chão daquele castelo. Pernas magras manchadas de nanquim estavam fixas. A tinta minava do corpo daquele ser denominado de Morte. Os cabelos, cacheados, embaraçados; sua roupa consistia apenas em uma camiseta branca usada como vestido improvisado, manchada de preto. Os olhos dois buracos em seu rosto, vazados para o Mundo dos Mortos não podiam expressar compaixão. Os lábios secos e negros pareciam tristes. A pele pálida contribuía para que parecesse um cadáver vivo.

— Foi-se a última manhã e inicia-se o último dia de novo — ela se ajoelhou. — Pobre Aurora perdeu a vida com esperança de que Estela salve o mundo. Se ela soubesse a verdade.

Certo, aquelas últimas páginas não faziam sentido. Cena esparsa, tanto do ponto de vista da primeira quando da segunda vez em que Estela havia chegado ao Hospital. Nenhum personagem baseado em alguém real. A constatação deixou Tamires um pouco desanimada. Eram delírios aleatórios o que Ester escrevia? As referências reais não passavam de pano de fundo guardado pelo subconsciente da cunhada?

Levantou-se. Afastou os cabelos do rosto, observou o relógio. Depois se voltou para Ester que estava sentada em frente à escrivaninha, escrevendo. Aproximou-se.

— É sobre Estela? — perguntou.

A cunhada assentiu sem tirar os olhos do papel.

— Ela ainda está confusa, mas não tardará a descobrir as coisas. Não é assim com todo mundo?

Foi a vez de Tamires concordar sem palavras. Não sabia o que fazer. Ester pareceu ler pensamentos. Falou:

— Eu estou bem, não se preocupe. Pode ir.

— Está bem.

Tamires deixou quarto da cunhada. Desceu à sala no intuito de ligar ao marido e relatar sua descoberta. Discou o número do celular de Ernesto. Ele atendeu preocupado, mas ela se adiantou dizendo que estava tudo bem. O motivo da ligação era outro: Ester escrevia. Ernesto pediu para que repetisse. Tamires contou-lhe tudo.

O irmão de Ester não pôde deixar imediatamente o trabalho para ver com os próprios olhos o que a esposa tinha lhe adiantado. Apesar de ter permissão para deixar a loja quando fosse chamado para auxiliar a irmã, havia um trabalho inadiável para ser realizado. No entanto, a ansiedade o acompanhou durante todo o dia, assim como a desatenção. Quando ter-minou já estava próximo o fim do turno. Saiu apressado, tomou o ônibus. Uma hora e meia. Chegou em casa. Sabia que a esposa estava na escola, dando aula e que Ester havia ficado com Carmem.

— Ela não desceu nem para almoçar. Tive que levar a comida — a empregada informou.

— Tamires disse que ela está escrevendo.

— É verdade. Subi algumas vezes para ver se tudo estava bem e a vi com a caneta em punho. Parecia concentrada.

— Eu vou falar com ela — Ernesto subiu as escadas.

Deu dois toques na porta. Abriu e entrou. Ester já o aguardava em pé. Os olhos da mesma cor se encontraram. Eram irmãos, mas apenas um sabia disso.

— Olá — ele tentou ser cordial. — Soube que está escrevendo um livro.

— Como soube? Ainda não mostrei a ninguém.

— Ester, conversamos algumas vezes sobre isso. Você se esquece das coisas.

Ela abaixou a cabeça.

— Eu bem que desconfiei que havia algo de errado. Este corpo que tenho não é o meu de verdade. Eu deveria ser mais nova...

— Sim, sua mente é jovem. Ela está parada no tempo, mas as outras coisas não. Eu sou o seu irmão Ernesto.

Ela riu.

— Noto semelhança. Tenho escrito sobre as coisas que reconheço, embora não saiba como. Não me espantaria se você fosse mesmo o meu irmão mais novo.

O coração de Ernesto deu um pulo. Estava tendo uma conversa de verdade com a irmã? Ele a observou ir até a escrivaninha e juntar as folhas com cuidado. Depois vindo em sua direção.

— Pode me ajudar a entender o que escrevo? Essas pessoas existem de verdade? — entregou-lhe o monte de folhas. 


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