Capítulo 29 - Jullie

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Sophie queria sair, eu queria ficar dormindo, mas o que não fazemos por amor?
Tomo banho com a mesma preguiça que tenho na aula de Educação Física. Deixo a água fria cair sob meu corpo, quem sabe assim não acordo? Lavo meus cabelos com meu shampoo favorito e ao terminar, desligo o chuveiro. Assim que termino de me enxugar, me enrolo na toalha e saio da banheiro.
- Deu, pode ir - Digo a Sophie, que está sentada na cama mexendo no meu celular.
Ela pega sua toalha, me beija e vai em direção ao banheiro.
Agora tenho uma nova missão: Escolher uma roupa. Já que iríamos andar de bicicleta, decido colocar um all star azul, um short de malha branco e uma camisa manga longa azul. Pego o short e o visto.
- Onde eu guardei essa camisa? - Pergunto a mim mesma.
Procuro por tudo, até me lembrar que estava na mala de Sophie. A abro e vasculho, até que finalmente a encontro. Assim que a puxo, uma cartela de comprimidos vem junto a camisa. Logo procuro por mais, até encontrar outros sete. Na pequena embalagem dizia em letras grandes: LAXANTE.
- Não é possível - Dizia a mim mesma. Será que mesmo depois de tudo o que o Dr. Austin disse, Sophie não percebeu o quanto sua vida estava em risco?
Respiro e conto até dez. Não queria ser tão dura com ela, mas era preciso. Vou até minha mesa de cabeceira e de lá, tiro um cartão retangular com o endereço e telefone da clínica de reabilitação que o doutor indicou. Não queria ser tão dura com ela, mas era precisa. Sophie precisava de um choque de realidade.

- Antes de irmos, podemos passar em um lugar?
- Claro, onde?
- Surpresa - Digo, com um sorriso falso - Só não garanto que irá gostar - Falo um pouco mais baixo.
- O que disse?
- Nada - Respondo.
Embarcamos em um táxi enfrente a minha casa. Como a clínica era um pouco afastada, demorou cerca de cinquenta minutos pra chegar.
Ao atravessarmos os grandes portões, sinto Sophie se arrepiar ao meu lado. Aquilo me apertou o coração.
- Eu sei onde estamos, você não vai me deixar, vai? - Pergunta com os olhos marejados.
- Ei, relaxa. É só uma visita.
- Eu não quero ficar aqui. Podemos ir embora?
- Não, desculpe. Vem - A puxo para dentro.
- Olá, podemos falar com a paciente Helena?
- Familiares?
- Não, o Dr. Austin me mandou aqui.
- Ah, claro. Por aqui.
Seguimos o homem negro e alto que nos recebeu. Ele parecia simpático, Will o seu nome.
- Helena, visita para você.
- Para mim? - Uma garota alta, muito alta mesmo, de cabelos curtos pergunta.
- Sim, pacientes do Dr. Austin.
- Ah, tudo bem. Vamos? - Se refere a mim e a Sophie.
Apenas concordo com um leve balançar de cabeça.
Helena nos leva a um jardim amplo, com diversas flores, árvores e até um pequeno lago. Nos sentamos em um dos vários bancos espalhados pela grama verde, Sophie apenas me seguia calada, segurando uma de minha mãos.
- Então, aposto que uma de vocês duas é paciente do Austin.
- Sim, sou eu - Sophie se pronuncia pela primeira vez.
- Eu também já fui. Austin é meu padrasto. Tive anorexia ano passado, cheguei a pesar quarenta e seis quilos. Olha, sei que Ana parece ser sua amiga mas... Não é bem assim. Bem, você pode ter quarenta quilos e achar que trinta e cinco vai ser um peso ótimo, que você estará magra. Mas não vai ser isso que vai acontecer. Quando tiver trinta e cinco, vai querer menos, menos e menos, até que seu corpo não vai aguentar. Sabe, eu tinha uma irmã gêmea. Ela era com toda a certeza, a pessoa que eu mais amava no mundo. Um dia entramos em um site Thinspo, não iríamos ser Pró-Ana, o queríamos saber o que rolava naqueles sites. Lá vimos meninas lindas, magras e perfeitas, como queríamos ser. Juntas nós começamos a entrar no mundo Ana e Mia. Fazíamos dietas malucas, ficávamos dias sem comer, tomávamos altas doses de laxantes e diuréticos e comemoramos quando nossos ossos começam a aparecer. Foi quando ela decidiu que iria fazer uma dieta que consistia em ficar dez dias sem comer, apenas bebendo laxantes. Nesse momento, estávamos com quarenta e oito ou quarenta e nove quilos. Eu neguei, alegando que era muito tempo sem ingerir nada, mas ela prosseguiu. No nono dia de dieta, seu corpo estava fraco demais, foi quando resolvi contar a minha mãe. Minha irmã foi para o hospital, e faleceu treze dias depois, por desnutrição.
Deixei escapar algumas lágrimas. Sophie apertou minha mão com força e suspirou baixinho.
- Olha, você provavelmente deve ter passado por algo que te fez procurar a Ana, mas ela não vai te ajudar. Ana está dentro de você. Você é forte, apenas por esta aqui neste momento. Você pode se livrar da Ana, assim como eu também me livrei.
- Desculpe ser tão franca - Sophie diz - Mas isso é o que todos dizem, e Helena, eu ainda não consigo achar errado o que faço. Eu sou gorda, e já sofri demais por isso. Não quero sofrer novamente, não quero.
- Me acompanhem - Helena pede.
A seguimos até o quarto onde Will a chamou.
- Olhe - Ela puxa Sophie para frente de um espelho - O que você vê?
- Uma garota gorda.
- Não, Sophie. Resposta errada. Suba - Aponta para uma balança com medidor de altura. Sophie sobe e observa seu peso: 38,30, o mesmo peso que saiu do consultório - Sophie, você já viu alguém pesar trinta e oito quilos, e ter um metro e sessenta e cinco de altura sendo gorda? Ana manipula a sua imagem. Ela é como um demônio que controla seu corpo. Você lembra a última vez que comeu algo sem contar as calorias que o alimento tinha? A última vez que não se culpou por fazer uma refeição?
Sophie apenas ouve, sem dizer nenhuma palavra.
Helena a puxa novamente pera frente do espelho.
- Sophie, quero apenas que se concentre, okay?
- Okay.
- Feche os olhos - Ela obedece, enquanto fico sentada em uma poltrona observando tudo atentamente.
- Quando eu mandar,  quero que você esvazie sua cabeça. Tente focar somente na imagem do espelho. Agora.
Soph abre os olhos e encara sua imagem refletida. Lágrimas caem de seus olhos.
- O que eu fiz? - Ela sussurra em meio às lágrimas em um fio de voz.
- Consegue enxergar?
- Sim... Não... Esta tudo confuso.
- É a Ana tentando manipular a sua imagem. É como um amigo imaginário que vive dentro de você. Que influencia sua visão, olfato, paladar e seu sua ia forma de pensar.
- Não... Eu consigo parar se quiser - Sophie contradiz.
- Consegue? Então toma - Helena tira um biscoito recheado de dentro de um vidro rosa, que agora parecia muito interessante - Vai, come. Lembre-se que não vai poder vomitar.
Sophie pega o biscoito na mão e pensa por um minuto.
- Desculpa, eu não posso - Diz por fim, chorando mais.
- Você tem que se livrar dela. Lute. O corpo é seu, é você que controla.
- Tudo bem, eu vou tentar.
- Tem certeza?
- Sim, o corpo é meu, sou eu quem controla.
- Me sigam por favor, quero mostrar uma última coisa.
Paro de comer os biscoitos de pote rosa e as sigo.
- Aqui é onde ficam os recém chegados. Aquela - Aponta para uma meninas loira de cabelos cacheados - É Rue. Faz uma semana e meia que ela chegou aqui, tem apenas treze anos. Ela é Pró-Ana.  Sua devoção pela anorexia é muito forte. Ela é uma escrava Ana e Mia. Pesa trinta e um quilos, problemas a parte, ela é uma graça - Acena para a menina pelo vidro - Mas... Presumo que ela não dure muito tempo.
- Como assim?  - Pergunto - Por que?.
- Bem, Rue, como já disse, é uma escrava Ana e Mia. Sua anorexia é tão avançada, ela está tão magra,  que seu corpo não aguentaria a cirurgia para colocar a sonda em seu estômago, e seu corpo está tão desnutrido,  tão fraco, que não irá aguentar muito tempo. Normalmente ela fica assim,  deitada. Não tem força para se levantar, apenas com cadeira de rodas. As vezes converso com ela e consigo convence-la a comer, mas são raras as vezes - Olho uma última vez para garotinha deitada, frágil. Me dói pensar que poderia ser Sophie ali.
Conversamos um pouco mais com Helena, que se mostrou uma ótima pessoa, e logo fomos embora. Sophie não quis mais ir fazer sua caminhada, então decidimos ir para casa.
- Eu não queria que fosse assim, mas... Achei que você tinha visto o que está fazendo com você mesma. Encontrei seus comprimidos dentro da mala.
- Ah - Sussurra.
Ficamos um tempo sentadas na cama lado a lado, até que ouço seu choro baixinho.
- Ei, não chora. Eu
 não gosto de te ver chorando,  dói em mim.
- Olha, eu sei que não sou a pessoa mais fácil de lidar. Sou teimosa, fico insuportável na TPM e sou toda problemática,  não chego nem perto de ser perfeita. Mas,  por favor, não desiste de mim. Eu juro que vou tentar me livrar delas, eu só preciso do seu apoio. Por você eu vou me livrar delas, por você eu vou tentar.
- Sophie, olha pra mim - Peço - Você é perfeita do jeito que é, é perfeita pra mim. Eu nunca vou te abandonar,  te amo mais do que a mim mesma. Você tem problemas,  todos têm, mas não vai ser por isso que vou te deixar. Vou estar ao seu lado na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, até que a morte nos separe - A beijo. Clichê, eu sei. Mas naquele momento, precisava dizer pra ela tudo o que realmente sentia.
Nos deitamos na cama frente a frente. Fiquei olhando em seus olhos azuis, que tanto amava. Como eu a amava. Toquei seus fios ruivos, agora curtos, que batiam pouco abaixo do maxilar. Sophie fecha os olhos ao sentir meu toque, e eu, apenas sorrio.
Puxo seu corpo mais para perto do meu, deixando meu queixo no topo de sua cabeça e seu braço envolta da minha cintura. Não demorou muito para dormirmos. A tarde foi cansativa, muitas emoções rolaram. Apenas nos demos o prazer de descansar, uma na companhia da outra.

Acordo duas horas depois. Lá fora ventava forte, as árvores balançavam e o céu estava nublado. Com certeza iria chover. Hoje não iria ser uma boa noite para ela.
Desço as escadas para preparar um café da tarde para Soph.
- Oi mãe - Digo a ela, que lê tranquilamente o último livro de Cinquenta tons de cinza.
- Oi filha.
Preparo dois pães,  duas xícaras de chocolate quente, biscoito, e umas frutas cortadas. Coloco tudo em uma bandeja,  dou um beijo na bochecha de minha mãe e subo.
- Acorda baixinha - Dou um beijo estalado em sua bochecha.
- Oi - Responde com a voz rouca.
- Trouxe isso - Mostro a bandeja - Você deve estar com fome.
- Sim, muita.
Coloco a comida no meio da cama e comemos conversando. Em alguns momentos ela parava de comer e ficava pensativa. Eu apenas dizia que ela era linda, a completa verdade.

P.O.V SOPHIE

Passei três dias na casa de Jullie. Nesse pouco tempo conheci sua mãe, que me emprestou os três livros de Cinquenta tons de cinza, visitei a clínica de reabilitação e lá conheci uma garota que me fez abrir os olhos, me mostrou o estrago que fiz e fui tratada como uma princesa. A cada dia que passava, tinha mais certeza que meu amor por Jullie era infinito.
Na manhã daquela quinta - feira não estava nem um pouco afim de assistir as aulas. Eu e Ju nos acordamos atrasadas, chegamos na sala de aula quinze minutos depois do sinal tocar.
Passo as três primeiras aulas dormindo, já que não consegui sentar ao lado de Jullie. O sinal para o intervalo toca, e o mesmo passa depressa.
A próxima aula era de história, o professor orientava os lugares. Mais uma aula para dormir. Sinto o celular vibrar no meu bolso.
- Número privado? - Pergunto a mim mesma. Meu coração acelera e minhas mãos suam. Fecho os olhos e abro a mensagem.

" Ei, pequena. Relaxa, finalmente o pesadelo acabou. Te amo muito.
                                           Com carinho: Jullie "

A procuro pela sala com os olhos. Quando a encontro,  ela também me olho. Diz um " Eu te amo" sem som e me manda um beijo. Faço o mesmo e digito uma mensagem:

" Sim, meu amor. O pesadelo finalmente acabou, eu te amo. "

Por você (EM REVISÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora