Capítulo 19

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Natália POV

O rumo da minha vida mudou há dezoito anos atrás, quando a minha mãe regressou de uma longa estadia em Moçambique comigo nos braços e me apresentou pela primeira vez a toda a minha família.

De acordo com o meu irmão, que na altura tinha cinco anos, todos se reuniram num banquete enorme e cheio de comida, realizado na herdade dos meus avós em Espanha, e celebraram o nascimento da mais jovem Rendhal.

O meu avô paterno, pai do meu pai, era na altura quem dirigia a Sociedade e quem reparou em algo em mim que era diferente e que mais ninguém havia notado. Esse detalhe era pouco visível na altura, pelo menos não tanto como agora, e deixou todos os meus familiares chocados.

Para poder explicar totalmente a importância dessa característica física, teria que voltar à história da criação da Sociedade de Assassinos e embarcar numa longa narração de mitos egípcios e a sua influência no aparecimento da primeira Sociedade.

De forma simplificada, quem nascesse com olhos bicolores, principalmente de cores claras, era considerado mental e espiritualmente superior aos restantes assassinos e, por isso, deveria competer-lhe as tarefas mais importantes, entre elas a de dirigir a Sociedade inteira.

Durante toda a infância, os meus tios e avós trataram-me melhor que o meu irmão e os meus primos, por saberem que era a primeira vez na Sociedade dos tempos modernos que um assassino nascia com aquela condição raríssima.

Na altura, o meu avô era quem dirigia a SIAT, porém ao reformar-se da profissão de assassino teve que dar o seu lugar a outro, e a incerteza quanto ao meu futuro cresceu, pois era bem provável que esse novo representante anulasse essa lei assim que tivesse conhecimento da minha situação.

Na escola e em todas as situações que não estivesse em família, tinha que usar uma lente ou óculos escuros, de forma a que mais ninguém soubesse.

De todo o modo, eu e o meu irmão continuámos a estudar normalmente, os meus pais continuaram a trabalhar, e o meu avô nunca deixou de insistir que eu era a única e verdadeira herdeira de algo que agora repugno e anseio destruir.

A Maria está certa, o que significa que o pai do Pietro, ao ver os meus olhos, compreendeu quem eu era, o que é estranho, pois isto é algo que só um genuíno assassino deveria saber.

Ou então mais provável é que ele tenha contactado os seus informadores dentro da SIAT, que imediatamente o fizeram saber da existência deste mito.

Não será de estranhar que o Pietro comece a desconfiar mais de mim depois desta revelação, já que ninguém esperaria que a herdeira de algo tão grande estivesse empenhada na destruição do que deveria herdar. Porém, esta é a verdade.

Duas pancadas na porta deixam-me a tremer, e faço de conta que estou a dormir e que nunca saí do quarto para ir até à mansão.

— Natália? — pronuncia em voz baixa o Pietro ao entrar no quarto.

— Hum.

— Espero não a ter acordado.

— É tarde demais — digo ao ligar o candeeiro de mesa e a coçar os olhos. — A viagem correu bem?

— Sim, dentro da normalidade. Já tem mais pistas do que aconteceu com o meu pai?

— Infelizmente não.

— Essa situação de certo que em breve estará resolvida.

Ele avança pelo quarto e senta-se ao meu lado, e ao olhar para ele de perto noto o cansaço e a falta de sono.

— Devia ir descansar — digo. — Teve um dia longo.

— Prometi que passava por aqui.

— Bem, e cumpriu.

Ele olha por uns segundos para a janela em frente.

— Tenho uma proposta para si.

— Diga. — Estremeço ao pensar nas perguntas que ele tem para me fazer.

— A Natália está a precisar de umas férias.

— Na realidade acho que nunca estive tão bem; esta mansão é melhor do que qualquer hotel que já estive.

— Algo a sério. Diga-me, alguma vez visitou a Tunísia?

— Não...

Mas estive lá perto quando tive a missão com os meus pais de derrubar um cartel argelino.

— Tal como suspeitei — diz ao olhar a minha reação enquanto tira do bolso dois bilhetes de avião.

— Isso... é...

— Sim.

Pego nos bilhetes e confirmo que são verdadeiros.

— Partimos amanhã.

— Mas... já?

— Não há tempo a perder — diz com um sorriso. — Sairemos da mansão por volta das quatro da tarde.

— Wow — murmuro. — E vai ser quanto tempo?

— Tanto quanto quisermos. — Os nossos olhos fixam-se durante alguns segundos, motivados pela minha descrença. Ele ri e continua: — Coisas de um Santoro.

— Eu... eu não sei como agradecer.

— A sua presença já será suficiente.

— Nunca fui de férias — digo imediatamente, quase sem pensar.

— Verdade?

— Sim, quando ficávamos em hotéis e pensões nunca tínhamos por objetivo relaxar ou conhecer as cidades.

— Bem, há uma primeira vez para tudo.

— E como irá fazer com o meu passaporte?

— Não tem nenhum?

— Tenho, porém com uma nacionalidade falsa e um nome falso.

— Em princípio irá resultar.

— Estou tão feliz — digo cheia de entusiasmo. — Vou de férias!

— Correção: vamos de férias.

Controlo-me de forma a que não me atire para cima dele para o abraçar e agradecer quantas vezes forem possíveis. Contudo, lembro-me de um pormenor:

— E a Sabrina?

— A Sabrina é... digamos... passado.

— Mas as férias correram tão bem.

Ele vira-se para mim de forma séria, porém responde num sorriso:

— Não me diga que andou a ler revistas.

— Não, juro! Foram as empregadas...

— Nada é o que parece. As coisas estão prestes a mudar.

— Para melhor, espero.

— Para muito melhor — responde num murmúrio e levanta-se até à porta.

Antes de sair, diz uma última coisa:

— Irei alertar uma das empregadas para que arrume os seus pertences depois do almoço. Boa noite, Natália.

— Boa noite, Pietro — digo, mas ele não chega a ouvir.

E agora, deitada na cama, penso no quanto desrespeitei todos os mandamentos de um assassino, e uma mistura de novos pensamentos invadem-se, assim como várias emoções que nunca senti.

Implacável: A Assassina InocenteOnde histórias criam vida. Descubra agora