Capítulo 3

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Capítulo3

Brunno não gosta de receber ordens, como também não gosta de Ryder. E é incrível como essas duas palavras juntas — ordem e Ryder — massageiam o ego do cara "bombadão" de cabelos compridos. O cara é tão narcisista, que mandou tatuar o próprio nome nas costas, como uma espécie de insígnia de uma instituição.

Tem o ego do tamanho do monte Everest, achando que ditar regras e cuspir lições de moral faz dele a pessoa que devam seguir como líder, achando-se secretamente o mais preparado para a função que, por obviedade, é designada a Jorge. Em oculto alimenta em sua mente deturpada esse desejo discreto, enquanto puxa o saco do líder.

Dia após dia, Brunno acalenta a vontade de dar o fora, seguir seu destino, esteja ele na estrada que for, na direção que a placa lhe indicar, mas o instinto de sobrevivência lhe diz que, se quiser continuar a viver mais alguns anos, é necessário ficar onde tenha pelo menos o mínimo de segurança, ainda que isso implique conviver com pessoas como Ryder. É claro, não é fácil para ele acatar ordens de alguém que se diz superior e quer tirar vantagens dos mais fracos, mas enquanto ele estiver ajudando Jorge, Brunno será apenas o burro de cargas ali dentro, que é uma espécie de mula do tráfico de bens de sobrevivência.

Claro, alguém tem que se arriscar, não é mesmo? Então por que não mandar Brunno? Ele é ágil, esperto, já matou muitos zumbis e provou que é capaz de entrar e sair de uma casa sem ser notado, pegar o que precisa, negociar com inteligência o que não serve, e se tiver sorte, o que sempre tem, voltar mais ou menos ileso para o Cetrap.

Ryder não vê o grupo como uma unidade que se ajuda mutuamente, mas pesos mortos com quem ele tem que dividir comida e abrigo, talvez mais mortos e nocivos do que os que estão lá fora, "doidos" para entrar e comê-los. Jorge, porém, parece não ver nada disso, confiando nele, e isso não agrada a Brunno. Será que só ele pode perceber que o real desejo de Ryder é o de se tornar autoridade máxima no grupo? Não. Talvez não, afinal, já viu o doutor Samuel olhando para ele de forma que nunca olhou para nenhum dos outros membros.

Mesmo o circunspecto doutor Samuel, ou doctor, como Ryder o chama, já deve ter percebido que aquele homem de olhos acinzentados e tão duros quanto aço, não é algo bom em que se possa confiar.

O lutador de jiu-jitsu, de braço fechado por tatuagens que não fazem o menor sentido, que adora exibir seus músculos no corpo branquelo, que faz o tipo Johnny Bravo, não joga para perder e não está sujeito à liderança de Jorge como este pensa. Para Brunno, Ryder é um predador e só está esperando a hora certa para dar o bote em Jorge e em todos eles. Ele expulsaria um a um se tivesse a chance. Ficaria apenas com Serena ali, protegido enquanto desse.

(***)

Reunidos no terceiro andar na ala sul.

Ali é onde ficam os equipamentos, como a ressonância magnética e os outros aparelhos de neuropsiquiatria. A ala VIP, como Brunno gosta de chamar, por conta do bom gosto e requinte de todo o setor. As paredes de vidro que separam os ambientes, como o da espera e o da recepção, vão do teto ao chão, o que no passado permitia que se visse as pessoas transitando de um lado ao outro.

O piso laminado bege ainda está brilhando, os estofamentos de couro negro dos bancos ainda estão intactos. As portas roxas ainda conservam os nomes dos psiquiatras especialistas em cada doença mental: esquizofrenia, transtorno do humor, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, transtorno obsessivo-compulsivo e por aí vai.

Entrando à direita e mais à frente, numa branca e ampla sala de espera redonda, com uma pequena saleta envidraçada, se lê "recepção" em letras douradas, numa placa de madeira, onde fica a divisão do laboratório central. Com quatro portas largas, uma de frente para outra, e na extremidade mais longe, separada por três fileiras de bancos grudados uns aos outros, está aquela porta de folhas duplas, reforçada com as mesas e armários arrancados das salas, garantindo que nada passe por ali.

A porta da morte, como Henrique chama. Aquela porta que nunca deverá ser aberta porque, ao final do corredor atrás dela, há outras salas onde eles estão fechados, esperando, arranhando, batendo, gemendo. Os pacientes transformados estão lá e isso mexe com os nervos de Henrique. Ryder gosta ainda menos de Henrique, porque ele é fraco e medroso, um menino de rua que vivia entre os barracos na favela São Remo, uma das maiores de São Paulo.

Olhar desconfiado e corpo franzino, Henrique é um menino negro e pobre que fugiu das violentas surras de um pai desempregado e uma mãe alcoólatra, e Ryder se enoja dele, não escondendo isso de ninguém. Preferia que Jorge não o tivesse trazido para o grupo quando o encontrou correndo sem rumo, os pés descalços, sangrando pela Av. Corifeu de Azevedo Marques, bem próximo da 16º BPM, onde Jorge trabalhava.

Nesse dia, Jorge corria feito louco com a viatura, sem olhar para os lados, sem socorrer quem quer que fosse. O caos havia se instalado e tudo o que ele pensava era em sua família. Sua esposa e o casal de gêmeos, Thais e Mateus, tão doces e pequenos, esperavam por ele em casa, por seu socorro, que não veio a tempo... Mortos daquela forma brutal... Mas Henrique corria. Um bando de infectados atrás dele enquanto fugia desesperadamente.

Ele não precisava ter parado. Jorge não tinha que ouvir sua obrigação de militar, não tinha que dar ouvidos à sua consciência cívica e nem lembrar que era um ser humano ali fora, um adolescente em perigo, correndo desesperadamente para sobreviver, enquanto era alvo de uma caçada ensandecida por coisas que até então ninguém sabia ao certo descrever com precisão do que se tratavam. Apenas que um dia foram seres humanos e que agora os perseguiam com uma fome desesperada. Então Jorge parou.

Uma freada brusca e impensada que deixou uma longa marca no asfalto quando a viatura parou ao lado do menino. A porta ao seu lado já estava aberta quando o comprido e forte braço do policial atravessou o espaço em um curto espaço de tempo, com seu corpo inclinado sobre o banco do passageiro e a enorme mão aberta saindo e o agarrando pela gola, puxando-o para dentro do carro.

Jogado feito um boneco de pano no banco ao lado, Henrique ainda conseguiu manter o pensamento delinquente ativo e sua primeira ação ao se ver dentro de um carro de polícia foi abrir a porta e tentar uma fuga. Jorge freou bruscamente, pois percebeu a intenção do garoto.

— Saia! — gritou. Os olhos negros quase lhe saltavam das órbitas e os lábios grossos debilmente abertos salivavam excessivamente, mostrando um homem fora de si.

Os mortos já se aproximavam do carro, estavam a poucos metros quando Jorge se debruçou sobre o menino e abriu a porta.

— Saia, seu delinquentezinho de merda! Fuja da polícia! — esbravejava, percebendo a aproximação cada vez maior dos bichos, que gemiam e arrastavam seus corpos retorcidos e mal coordenados enquanto Henrique, comprimindo-se cada vez mais no banco do passageiro, quase se fundindo a ele, sentia em seu rosto o hálito quente e raivoso de Jorge.

A primeira mão agarrou a porta. Henrique retesou o corpo no instante em que Jorge puxou a maçaneta furiosamente, esmagando os dedos pútridos, enquanto escorria um líquido escuro e viscoso deles. O policial engatou a marcha e arrancou com o carro, batendo com tal força contra os bichos que estavam à frente, que eles rolaram para cima do capô feito pinos de boliche.

Não disseram uma só palavra até o Cetrap. Henrique não gostaria de arriscar ao lado de um policial, afinal, no fim das contas, ele o havia salvado duas vezes, embora na segunda vez ele não tivesse tanta certeza de que era isso que quisesse ter feito e chegou mesmo a sentir certo deboche no ato. E Jorge estava perturbado demais para compreender que acabara de expor um menino àquelas coisas imundas e fedidas.

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