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Sobressalto-me quando uma mão fria pressiona o meu ombro nu. Tenho dificuldade em manter as pálpebras abertas pois a luz do candeeiro, apesar de fraca, incide sobre eles num ângulo que a intensifica. A minha face está apoiada numa superfície dura e gélida. Adormeci, mas não por baixo dos lençóis da minha cama.
"Kelsey, levanta-te!" Sussurra Tommy ao meu ouvido, numa excitação evidente que transforma o seu sussurro num guincho estridente. "Tenho uma coisa para te mostrar! Anda, levanta-te!"
De sobrancelhas franzidas levanto a cabeça sobre os livros de Química Avançada e Aplicada abertos nas páginas marcadas por indicadores coloridos. O exame de entrada à faculdade é daqui a poucos dias e ainda tenho dois capítulos de matéria por rever.
"Tommy, que horas são?" De olhos semicerrados, fito o relógio digital colocado na secretária. "Já passa da meia noite, o que raio é que estás a fazer acordado?"
Fixo-o com um olhar reprovador e, assim que me preparo para me levantar, as mãos de Tommy envolvem o meu pulso e puxam-me com toda a força até que as minhas pernas se estiquem sobre o chão.
"Anda!" Tommy insiste, dando um puxão tão forte ao meu braço que quase perco o equilíbrio.
Suspiro de cansaço.
"Tem mesmo de ser agora?" Protesto, num tom solene. "Já devias estar na cama, amanhã tens aulas."
"Por favor, prometo que nao demora nada..."
Examino a sua expressão enquanto os seus olhos pequeninos se vão tornando maiores e mais brilhantes e a sua boca sofre o processo inverso, contraindo-se num beicinho mimado.
Retiro os olhos.
"Estás a fazer chantagem emocional." Acuso, cruzando os braços sobre o peito. "Cara de cachorrinho abandonado não vale."
Tommy levanta uma sobrancelha.
"O que é chantagem emocional?"
É o que a mãe te está sempre a fazer, infelizmente és demasiado novo para conseguires entender isso, murmura a minha consciência para comigo.
"Esquece." Afasto a minha mãe do pensamento, não posso deixar que ela interfira no meu estado de espírito. "Vamos lá. Mas quero-te na cama depois disto e sem refilices!"
Tommy deixa que os seus lábios arrastem um "sim" de impaciência e arranca-me para fora do quarto.
Percorremos o corredor na direção que penso ser a do seu quarto exibindo comportamentos opostos: Tommy tenta conter o entusiasmo que lhe borbulha no sangue e eu, ainda de olhos ensonados, esforço-me para me manter de pé e não vacilar. O cansaço toma conta de mim até chegarmos à porta de entrada do seu quarto e ele diz-me para fechar os olhos.
"Porquê?" Pestanejo várias vezes. Sinto que a curiosidade me invade, sobrepondo-se à minha fadiga.
Tommy dá um pulo de entusiasmo com os lábios abertos num sorriso incrivelmente extenso, demasiado extenso para o seu rosto pequeno e delicado.
"Fecha os olhos! E não faças batota!"
Obedeço ao pedido do meu irmão. Os meus ouvidos captam o som da maçaneta da porta a rodar e esta abre-se. Apesar de ser guiada pela mão de Tommy, avanço em passos cautelosos, a fim de evitar que os meus pés tropecem em legos ou carrinhos de brincar. Uma vez dentro do quarto, os nossos dedos desenlaçam-se e ele fecha a porta atrás de mim, deixando-me cega e estática no meio do quarto.
"Já podes abrir."
As minhas pálpebras voltam ao seu lugar inicial, devolvendo-me a visão. A curiosidade e ansiedade corroem-me por dentro e não demoro a pousar o olhar na silhueta do meu irmão. Está encostado à cama e exibe um sorriso humilde. Por entre a escuridão, mesmo sobre a colcha fina de Primavera, repousa um avião de cartão que ocupa a largura total da estrutura de madeira maciça. Está cuidadosamente trabalhado, recortado, pintado. Apercebo-me agora de que as únicas luzes que iluminam o espaço são as que atravessam as janelas pequeninas do avião de cartão.
Deixo o queixo cair, os meus lábios formam um O perfeito e os meus olhos ressaltam entre Tommy e o avião.
"Feliz aniversario, Kelsey!"
Surpreendo-me por não me ter lembrado de que fazia dezoito anos. Cá em casa os aniversários são ignorados, não se comemoram nem com um simples sopro das velas.
A minha mãe sempre foi uma mulher excessivamente poupada, mas o seu pior defeito é estar demasiado ligada à religião. Ainda me recordo de ser nova e perguntar-lhe se podia organizar uma festa de aniversário e convidar os meus amigos. A sua resposta era sempre a mesma: comemorar aniversários é das coisas que mais pecados atrai. A gula em querer devorar toda a comida que salta à vista, a avareza incontrolável de se desejar receber prendas que nunca parecem suficientes, a vaidade de se querer ser o centro das atenções... Já para não falar na inveja. Os aniversários estão infestados de inveja. Não, nesta casa isso não acontecerá. Está fora de questão. Eu nunca entendia o porquê daquelas palavras.
No entanto, acabei por perceber que não estava a viver uma infância normal e prometi a mim mesma que não deixaria que Tommy caísse nas inquietações religiosas da nossa mãe. Jurei esforçar-me para lhe oferecer uma vida contrária à vida que vivíamos. Uma vida onde ele pudesse comer aquilo que quisesse e as vezes que quisesse, vestir o que quisesse, ir brincar onde quisesse e com quem quisesse, na ausência de uma voz controladora. Se isso implicasse tirá-lo debaixo do teto da minha mãe e cria-lo sozinha, então assim o faria.
Porém, e felizmente, a minha mãe nunca chegou ao ponto de me fazer querer avançar com esse plano. Quiçá no seu coração ainda reste uma porção de amor maternal e não queira perder o filho como perdeu a sua primeira filha. Como me perdeu a mim.
A realidade esbofeteia-me sem aviso e eu regresso ao quarto do meu irmãozinho. Sinto uma onda de calor a atravessar-me e os meus olhos humedecem, criando lágrimas em cada canto. Um torrente de emoções flui dentro mim: raiva pela minha mãe, desilusão da criança que fui, gratidão pelo Tommy. Não tenho forças para dizer nada, preciso de me focar em não chorar diante dele. Apenas tombo os joelhos no chão e balanço a mão para a frente e para trás num gesto convidativo.
Tenho o meu irmão nos braços. Enquanto assim for, nada mais importa.

Yay primeiro capítulo!!!
O que acharam? Muitas emoções? Muito mistério? Ou nem por isso?

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Beijo e fiquem bem :)

deathbed » c.h. au [EM PORTUGUÊS]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora