A chuva caía pesadamente sobre o telhado do orfanato. O cheiro de terra molhada se espalhava pela noite, enquanto o brilho das estrelas era ofuscado pela grandiosidade da enorme lua cheia que enfeitava o céu.
O som das gotas batendo suavemente nas janelas se misturava ao ritmo das respirações tranquilas que preenchiam o pequeno quarto, onde algumas crianças dormiam enroladas em seus cobertores, tentando se proteger do frio.
A luz prateada da lua atravessava pelas frestas decadentes das janelas de madeira, espalhando feixes cintilantes por todo o cômodo.
Na extremidade do quarto, onde as paredes estavam tomadas por fungos e ácaros, repousava uma criança adormecida.
Seus cabelos, de um branco surpreendente, eram curtos e mal cortados em alguns pontos, formando falhas visíveis em sua pequena cabeça.
Sua pele era pálida — não de uma maneira doentia, mas delicada. A ponta do nariz estava avermelhada, e ele fungava silenciosamente. Mesmo adormecido, se contorcia pelos lençóis em aflição; o suor frio escorria por sua tez pálida enquanto seus pés chutavam o vazio repetidas vezes.
De repente, o garoto arregalou os olhos. Sua boca se abriu em um grito silencioso, e o coração pulsava de forma descompassada, acelerado. Lágrimas quentes deslizavam pelo pequeno rosto, mas nenhum som escapava. Se não fosse pelo brilho úmido ainda fresco em suas bochechas, seria como se aquele momento de pavor jamais tivesse existido.
Ao redor, as outras crianças permaneciam adormecidas. A chuva, implacável, continuava a bater contra a janela.
· · • • • ✤ • • • · ·
Desde que chegara ao orfanato escocês, Draco era constantemente arrancado do sono por pesadelos. Era como se o próprio país conspirasse contra ele, amaldiçoado da mesma forma que sua existência.
O pesadelo repetia-se, fiel aos seus piores medos, como uma sombra que ele acreditava nunca abandonar. Memórias e imaginação se misturavam, amplificando o passado e tornando cada sensação mais intensa. A dor se tornava quase insuportável, o medo, tangível.
Ele podia jurar de dedinho que ainda sentia a rigidez em seus músculos, como se seu corpo ainda estivesse na agonia das ilusões do sonho, mesmo desperto. Draco odiava aquilo — não porque fosse assustador, mas porque parecia injusto. Crianças deviam sonhar com doces, cavalinhos ou com correr pela grama. Ele só sonhava com dor.
Constantemente, era possível ouvir a voz estridente de Brigitte ecoando pelos corredores, inventando histórias sobre unicórnios voadores que deixavam rastros de glitter com os cascos. Paul falava de rios de chocolate, minhocas de gelatina e nuvens de algodão doce que pareciam não acabar nunca.
Era injusto.
Injusto que ele nunca se sentisse parte de nada. Injusto que ninguém conseguisse entendê-lo. Injusto que só ele — só ele — sonhasse com os horrores da casa da Senhorita Moreau.
Draco também queria sonhos lindos e coloridos. Ele queria poder rir ao acordar, como as outras crianças. Mas, em vez disso, só encontrava o porão úmido e frio, o sótão moribundo e coberto de poeira.
Ele não entendia por que seus sonhos eram tão diferentes. Será que havia algo errado com ele? Talvez os outros tivessem razão… talvez fosse mesmo amaldiçoado.
Quando fechava os olhos, não via cores ou brilhos. Via correntes. Sentia o cheiro da madeira úmida, da ferrugem, da poeira que queimava sua garganta. Às vezes, acordava com a impressão de que o chão do orfanato era o mesmo da casa da Senhorita Moreau, frio e áspero contra sua pele.
Draco puxou o cobertor até o queixo, como se aquele tecido gasto pudesse afastar as lembranças. Queria acreditar que, se se enrolasse bastante, poderia desaparecer dentro dele e acordar em outro lugar.
Um lugar onde tivesse pais que o amassem.
Um lugar onde existissem amigos de verdade, que rissem com ele, que não tivessem medo dele.
Um lugar que fosse casa — não paredes mofadas, não corredores frios, não porões e sótãos — mas casa de verdade.
Ele se encolheu debaixo do cobertor, mas o sono não voltava. A chuva batia forte contra a janela, e Draco imaginava que o céu também estivesse chorando. Gostava desse pensamento — porque assim, talvez, não fosse o único triste no mundo.
Virou o rosto para o vidro embaçado e viu seu reflexo malfeito. Os olhos prateados brilharam um pouquinho com a luz da lua, e ele pensou que pareciam olhos de fantasma. Ninguém mais no orfanato tinha olhos assim.
Às vezes, Draco sentia que estava no lugar errado. Como se tivesse se perdido de algum lugar que deveria ser seu de verdade. Mas não sabia de onde. Ninguém nunca contou nada. Era como começar um livro pela metade: faltavam páginas demais, e ele nunca entendia a história inteira.
Com as mãos tremendo, ele pegou o velho toca-fitas que ainda estava escondido sob os lençóis. Era pequeno, gasto, com arranhões e botões meio tortos, mas ainda funcionava. Sua única forma de escapar de tudo aquilo. Ele apertou o botão de “play”, e logo as notas suaves de uma música antiga preencheram o silêncio da noite, tímidas, mas persistentes.
"Whenever I'm alone with you"
O som era abafado, chiando de vez em quando, mas trazia algum conforto. Pelo menos ali, no som suave das canções, Draco se sentia um pouco menos sozinho. Era como se a música abraçasse sua cabeça e seu peito ao mesmo tempo, envolvendo tudo o que ele não conseguia nomear.
"You make me feel like I am home again"
Ele fechou os olhos e se deixou levar. A chuva batia forte contra a janela, pingando e escorrendo em caminhos imprevisíveis pelo vidro, como pequenos rios de prata. Draco imaginava que as gotas levavam um pouco da tristeza com elas. Ele apertou o walkman contra o peito, tentando absorver aquele calor que não vinha do cobertor ou do quarto, mas da música.
"Whenever I'm alone with you"
A melodia era sua única fuga, o único lugar onde não precisava se preocupar com o que era ou com o que os outros pensavam dele. Ele sentia que algo dentro dele era diferente, estranho e pesado, mas não conseguia entender. Não tinha palavras para isso, não conseguia explicar nem para si mesmo. Era só um sentimento que crescia no peito, misturado com medo, vazio e uma pontinha de esperança que nem sabia que tinha.
Por agora, ele apenas fechou os olhos, respirando devagar, e se deixou ser levado pela música, esquecendo por um momento sua vida e recriando outra. Um mundo onde talvez tudo fosse mais leve, onde o cobertor fosse macio, onde não houvesse risadas cruéis, nem corredores frios e úmidos. Um lugar que, mesmo só por alguns minutos, parecia um pouquinho seu.
"You make me feel like I am whole again"
O som da fita começou a falhar, chiando de vez em quando. Draco franziu a testa. O barulho parecia dizer que tudo podia acabar a qualquer momento. Como se até a música quisesse deixá-lo sozinho.
Ele abriu os olhos e olhou para o toca-fitas nas mãos. Era velho, pequeno, e podia parar a qualquer hora. E isso o deixou com um frio no peito. Como tudo na vida dele, pensou Draco. Nada durava. Nada mesmo.
Ele suspirou e apertou o botão de desligar antes que a música acabasse de repente. O quarto ficou em silêncio. Pesado. O silêncio parecia maior do que antes.
As lágrimas voltaram, quentes e traiçoeiras, escorrendo pelo rosto. Draco não tentou limpá-las. Para quê? Ninguém ia ver, e ele nem sabia direito se queria que vissem...
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The inheritance
FanfictionDraco Aubinet não sabia quem eram seus pais, nunca soubera. Desde que tinha memória, o único nome que conhecia era "Aubinet", o nome que lhe haviam dado e que parecia carregar consigo uma história de vergonha e abandono. Ele não sabia de onde vinha...
