The Day After

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LUNNA REYES

Os livros e folhas à minha frente estavam cheio de tabelas de conjugação e regras gramaticais, as páginas cobertas de marcações de canetas e anotações. O meu exame de Inglês estava a aproximar-se e, por mais que adorasse palavras, o lado técnico de aprender uma língua estrangeira podia, por vezes, parecer interminável. Ter escolhido este curso na UCLA– Linguística – foi um desafio que me impus quando me mudei para cá. Queria aperfeiçoar o meu inglês e aprender uma nova língua, algo que poderia ser uma vantagem no futuro, já que falo português, e ficaria a falar também inglês.

Mas a minha mente não estava nos verbos irregulares nem na estrutura das frases. Continuava a voltar à noite anterior – a ele. O rapaz que conheci no bar, de quem nem sequer sei o nome. A música dele, a sua presença, a forma como parecia carregar algo pesado, mas sem nunca deixar que o quebrasse.

Olhei para a Myth, enroscada na minha secretária, a cauda a mexer-se preguiçosamente, como se me quisesse lembrar da minha distração.
— Está bem, está bem, eu sei... — disse, entendendo o pensamento da gata, e fechei o livro com um suspiro. — Hoje não vai haver estudo, tens razão.

Quando entrei no bar naquela noite, já tinha convencido a mim mesma que não era por causa dele. Era pela música, pela forma como me senti ontem à noite – viva, como se tivesse tocado em algo que nem sabia que precisava. Certo?

Ele estava lá, claro. Sentado no mesmo canto, a guitarra elétrica apoiada no joelho, afinando as cordas com uma facilidade prática. Quando me viu, os lábios dele curvaram-se num leve sorriso, suficiente para acelerar o meu coração.

— Voltaste — disse ele, num tom baixo, mas inconfundivelmente satisfeito.

— Acho que não consegui ficar longe — respondi, tentando soar casual, mas falhando miseravelmente.

— Bem... Sou o Miles — disse ele, felizmente, porque estava tão perdida nos pensamentos que provavelmente esqueceria de me apresentar novamente.

— Eu sou a Lunna.

Ele levantou-se, indicando que eu o seguisse. Fomos para uma sala nos fundos, escondida do resto do bar. Era um espaço pequeno e íntimo, cheio de instrumentos e com um leve cheiro a couro e metal.

— É aqui que costumo tocar quando não estou lá fora — disse ele, pegando na guitarra e ligando-a ao amplificador. — Achei que poderíamos começar aqui.

A ideia de tocar não parecia tão intimidante ontem, mas agora, ali, naquele espaço silencioso só com ele e a guitarra, os meus nervos estavam à flor da pele. Ele entregou-me outra guitarra, os dedos dele tocaram brevemente nos meus.

— Vamos começar com algo clássico — disse ele, ajustando o amplificador. — Conheces Sweet Child of Mine?

Ri-me, mais de nervos do que outra coisa. — Quer dizer, conheço a música, mas nunca toquei uma nota na vida. Como é que vais ensinar-me um riff desses?

— Está tudo bem — disse ele, com a voz paciente. — observa-me.

Ele começou a tocar, o riff icónico a preencher a sala. Observei as mãos dele, a forma como os dedos se moviam pelas cordas com uma precisão que fazia parecer fácil.

— Agora tu — disse ele, parando subitamente e acenando na minha direção.

— Assim, de repente? Fazes parecer tão fácil — hesitei e tentei imitar os movimentos dele. Foi desajeitado, desastroso, nada parecido com o que ele tinha acabado de tocar.

— Aqui — disse ele, posicionando-se atrás de mim. As mãos dele cobriram as minhas, guiando os meus dedos para os pontos certos. O toque dele era firme, seguro, e a proximidade fez-me prender a respiração.

— Ei... Relaxa — murmurou ele, a voz baixa e rouca perto do meu ouvido.

Tentei, mas não era a guitarra que me deixava nervosa. Era ele – a presença dele, a forma como a voz dele pairava no ar como uma música que eu não queria que terminasse.

Quando parámos, o silêncio era pesado, carregado. Virei-me para ele, e o olhar nos olhos dele enviou um arrepio por mim. Não era apenas música que estávamos a partilhar. Era algo mais profundo, algo mais sombrio, e eu não sabia se devia fugir ou deixar que me consumisse.
  

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MILES GREMS

O ginásio estava mais vazio do que o habitual naquela manhã, o que me agradava. Gostava do silêncio, do ritmo constante dos pesos e das repetições. Era uma das poucas ocasiões em que não precisava de pensar demasiado. Mas, naquele dia, nem o ferro conseguiu limpar a minha mente.

Continuava a reviver a noite anterior na minha cabeça, o momento em que olhei para cima da guitarra e a vi.

Quem és tu?

Havia algo nela, algo diferente.
Ela não se limitava a ouvir a música; ela sentia-a. Eu percebi pela forma como ficou ali parada, como se estivesse presa ao som, enraizada naquele momento.

As pessoas geralmente não ficavam muito tempo depois de eu começar a tocar, mas ela ficou. E depois falou, a voz dela suave mas firme, dizendo que era maravilhoso me ouvir.

Maravilhoso. Não estava habituado a essa palavra.

Quando o meu turno começou no bar naquela noite, já estava a torcer para que ela voltasse. Continuava a dizer a mim mesmo que era por causa da música, por encontrar alguém que a entendesse como eu. Mas a verdade era que não se tratava só da música.

Quando ela entrou, senti novamente aquilo, aquela atração, como se a gravidade tivesse mudado. Ela olhou para mim e sorriu, e senti algo a soltar-se no meu peito, algo que nem tinha percebido que estava preso.

— Voltaste — disse eu, tentando não soar demasiado ansioso.

— Acho que não consegui ficar longe — respondeu ela, e eu não consegui evitar o pequeno sorriso que me escapou.

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— Mais tarde nesse dia —

Saí do bar tarde, com o eco distante de Sweet Child of Mine ainda a correr-me pela cabeça. A sessão de prática com a Lunna não tinha corrido na perfeição – pelo menos tecnicamente – mas isso não importava. Havia algo na forma como ela tentava, na determinação misturada com aquele riso nervoso, que era difícil de esquecer.

A caminho de casa, não conseguia parar de reviver a forma como as mãos dela pareciam debaixo das minhas, a maneira como se inclinava para a guitarra, como se tentasse desvendar os seus segredos. Não se tratava apenas da lição. Era... mais profundo, como se eu a tivesse deixado entrar numa parte de mim que geralmente mantinha fechada.

O meu apartamento estava silencioso quando entrei, o tipo de silêncio a que já estava habituado. Coloquei a guitarra cuidadosamente no lugar de sempre e peguei numa garrafa de água, encostando-me ao balcão. Não costumava deixar que as pessoas ficassem assim na minha cabeça, mas havia algo na Lunna que eu não conseguia esquecer.

Dei por mim a pensar mais nela, sobre de onde vinha, sobre a vida de que tinha dado pequenas pistas mas não tinha realmente partilhado. Ela mencionara que escrevia, mas eu não fiz perguntas suficientes.

Antes de perceber o que estava a fazer, já tinha o telemóvel na mão. Não demorou muito a encontrar as redes sociais dela – o nome dela não era exatamente comum, e eu lembrava-me de como ela o tinha soletrado.

O Instagram dela foi... bastante reflexivo do que conheci dela. Fotografias do gato dela, o Myth, enroscado em cantos iluminados pelo sol. Trechos de notas manuscritas, cheias de emoção viva, que pareciam vislumbres da alma dela. E ela – cabelo vermelho-escuro a cair-lhe pelos ombros, sempre vestida de preto, o olhar afiado e distante, como se estivesse à procura de algo fora do alcance.

Percorri mais tempo do que planeava, analisando as legendas que ela tinha escrito. Não eram os clichés habituais; eram pedaços dela. Honestos, vulneráveis, como se ela não tivesse medo de deixar o mundo vê-la como realmente era.

Adoro isso.

Strings of Connection Where stories live. Discover now