Cap. II - A vigília

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"Consegui meu equilíbrio cortejando
a insanidade"

TIMOTHY WRIGHT POV'

           A tempestade rugia lá fora, mas dentro da casa, tudo era calma e cuidado. Eu podia ver pela única janela do quarto, que estava coberta por uma fina cortina, as gotas que escorriam pelo vidro e refletiam o lampejo de cada relâmpago.

           As fotografias velhas decoravam o branco desgastado das paredes, e os móveis antigos pareciam dedurar que o quarto não pertencia a doutora. E a cama em que eu repousava era uma peça robusta de madeira escura, com lençóis de linho e uma colcha de retalhos... Parecia ser feita à mão.

           Havia um relógio de parede antigo, cujo tique-taque era o único som além das nossas respirações. Era possível notar o contraste que os equipamentos da doutora davam àquele ambiente vintage.

           O ar era carregado com uma mistura de aromas, o óleo de madeira dos móveis, o perfume doce sutil que eu sabia que era da doutora, e o cheiro do antisséptico dos curativos que ela fez em mim. Era um lugar cheio de história, cuidado e memória.

           E lá estava ela, a mulher responsável por salvar a minha vida. Repousando sobre uma poltrona de couro velha, lutando contra o sono para poder me vigiar. Como um sentinela.

           Ela é uma figura que contrasta com a solidez dos móveis antigos que nos cercam. Pequena e de uma fragilidade que engana, há uma força em sua delicadeza que me faz pensar em porcelana - bela, mas capaz de resistir a uma queda. Seus olhos são como esmeraldas límpidas, brilhando com uma inteligência afiada e uma curiosidade que não se intimida diante do desconhecido.

           Os cabelos, uma cascata de fios rosas claros, quase albinos, caem suavemente pelos seus ombros e contornam os seus seios pouco robustos, refletindo a luz de maneira etérea. Sua pele pálida é quase translúcida, um véu sobre o vigor da vida que pulsa sobre ela.

           E, apesar de seu corpo magro, há uma elegância esbelta em suas curvas, e em cada movimento uma dança silenciosa que se desenrola enquanto ela cuida de mim.

           Mesmo com os olhos fechados, pude notar que ela havia se levantado, e com cautela ela caminhava até mim. E ainda que ela quisesse fazer pouco barulho para me acordar, eu conseguia escutar seus passos lentos e curtos naquele velho chão de madeira.

           Quando ela se abaixou, para checar meus batimentos, foi inevitável abrir os olhos. Queria vê-la de perto outra vez. Queria me certificar de que estava enganado...

Mas trabalho é trabalho.

           Podia ouvir Masky sussurrar em minha cabeça, atormentando-me novamente. Ao menos estávamos de acordo em não causar problemas a doutora, então eu não precisa me preocupar com algo além da sua encheção de saco.

Há algo nessa mulher que me intriga, Timothy. Algo que preciso descobrir.

           Antes que eu pudesse pensar em algo em relação a ele, fui tirado dos meus devaneios, pego de surpresa.

— Ah, está acordado. Como está se sentindo? — ela perguntou, com sua voz meiga açucarada.

— Como alguém que foi atropelado por um trem. Mas estou vivo, isso é o que importa. — Minha voz estava mais rouca do que o esperado...

— Bem, não temos trens passando por aqui, então você teve sorte — ela disse com um sorriso leve, que revelava um pouco dos seus dentes brancos alinhados.

Ela tem um ótimo humor.

— Você parece cansada doutora — comentei, tentando ignorar os importunos de Masky.

— Você parece um pouco melhor — Ignorou meu comentário, se afastando um pouco. — Estava com medo de você ficar com hipotermia.

           Ela tinha um semblante aliviado, enquanto guardava seu estetoscópio e o termômetro. Não conseguia deixar de observá-la. Meus olhos seguiam cada um dos seus passos dentro daquele quarto.

           Me movi lentamente, sentando-me na cama e ajeitando minhas costas em um travesseiro de penas que estava encostado contra a cabeceira.

— Não se mova tanto, ou vai abrir os pontos! — me repreendeu, correndo até mim.

           Por um segundo pensei que levaria um tapa, mas ela apenas ajeitou o cobertor sobre minhas pernas.

— Obrigado, doutora.

Não seja tão fraco, não estamos aqui para isso.

— Não se preocupe com agradecimentos. Aliás, me chame apenas de Maya, não estamos em um hospital. — Ela sorria, enquanto tocava meu rosto livremente, avaliando os curativos que ela havia feito.

— É um belo nome. — Sorri fracamente, virando meu rosto para ela e ela se afastou, visivelmente envergonhada.

— Vou preparar um chá quente — anunciou, enquanto se enrolava em um cobertor um pouco fino. — Por favor, não se movimente muito.

           Apenas concordei enquanto assisti ela deixar o quarto. Outra vez me encontrei sozinho, e eu sabia que esse era o momento de responder ao insuportável do Masky.

Não me ofenda tanto assim.

— Por favor, seja direto — reclamei, enquanto respirava fundo buscando um pouco de paciência.

É ela.

— Ela... parece um pouco diferente.

Nós sabemos a verdade. Esta cidade é pequena demais para existir outra como ela, Timothy.

           Eu odiava quando ele conversa com esse seu maldito tom zombeteiro, de quem tem razão. Eu odiava quando ele tinha razão. E odiava mais ainda conviver com ele. Mas ele tinha razão, esse porra tinha razão.

           Eu encarava pela janela a tempestade que parecia nunca cessar. Era como se ela fosse um estranho reflexo do caos dentro da minha cabeça. Maya era a garota que ele me fez procurar. É impossível haver outra como ela, e eu sabia disso.

           Tudo seria tão mais fácil, se ela apenas tivesse se assustado. Eu já tinha tudo planejado. Ela fecharia a porta na minha cara, assustada. Iria correr, e procurar um lugar para se esconder enquanto eu derrubava a droga da porta.

Como uma cadelinha covarde.

           Mas, ela acreditou nas minhas falsas súplicas, me ajudou e agiu como se realmente se importasse. Me ofereceu abrigo, um quarto aconchegante, roupas secas e um lugar quente para me deitar.

           Ela confiou em mim.

           Por um momento eu observei a porta entreaberta, e a luz fraca do corredor que invadia o quarto delineando as sombras. Talvez eu pudesse batizar o seu chá... mas, ela é muito meticulosa. Ela certamente perceberia.

           Eu poderia ir até a cozinha, com os olhos cheios de pânico. “Maya, por favor, você precisa vir ao quarto. É urgente.” Ela viria, preocupada.

Timothy, ela é apenas uma marionete dentro de todo esse jogo. Assim como eu e você. Não importa como o fará, apenas faça.

— Não quero machucá-la.

Mas, é o que ele quer.

           Ele... Tudo rodava em volta desse desgraçado. Se eu pudesse me livrar dele. Se eu pudesse levar Maya... Eu a levaria para fora, para a chuva, para qualquer lugar que fosse necessário, mas eu não deixaria que ele pudesse colocar suas mãos nela.

          

Caos - As duas faces do diaboWhere stories live. Discover now