Capítulo 4

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O choque do alerta do senhor Lobos atingia a ressaca de Tristán, que faziam de sua cabeça sua zona de guerra. A dor e a confusão ganhavam um amargo sabor de desespero. Ou de rum, mas a esta altura dava na mesma. Sua manhã alternava-se em vomitar nos jardins, prática corriqueira das últimas semanas, e olhar para a porta do casebre que dava acesso ao porão. Fora um dia que passara particularmente rápido, pois Tristán estava diante de uma escolha muito difícil para fazer. O escultor estava sem saída, e talvez houvesse apenas uma saída:

Talvez precisa-se vendê-la.

A noite chegou e, agora um tanto mais convicto da própria decisão, o escultor sentiu que deveria ao menos comunicá-la. Ele acendeu sua lamparina e, respirando profundamente, abriu a porta, descendo as escadas de pedra que davam acesso ao porão do casebre.

Lá, em meio aos instrumentos de pintura que Tristán negara o uso, havia uma área reservada. Apesar de lúgubre, o escultor tentou deixar o mais confortável possível para que ele realizasse seu trabalho longe de qualquer influência externa. E, para dizer a verdade, ele conseguira fazer uma única obra. Porém, seu objetivo era jamais vendê-la.

Mas o tempo urgia, e com ele a necessidade.

Ao fundo do porão, à fraca luz que a lamparina projetava, havia uma pedra enorme. Sua silhueta era sinuosa, contornando perfeitamente uma pessoa à sombra que havia no ambiente. É claro que sua beleza jamais se compararia à da pessoa que a originou. Faltava-lhe a pele macia e quase prateada. Faltam cabelos e olhos negros. E, acima de tudo, faltava-lhe uma doçura que mesmo tão perfeita esteticamente, a escultura jamais teria.

Como sempre, fiz tarde demais. Pensou Tristán. E, mesmo tão linda, não está aos seus pés. Porém, ainda assim, terei você comigo para sempre.

O escultor se aproximou da escultura. Havia pequenos sulcos enegrecidos ao redor dos olhos. Resultado da umidade excessiva do local, provavelmente. Ele usou parte do pano da manga para limpar os olhos da escultura. Parecia bastante com Valeria, é verdade. Mas, não havia escolha. Anunciaria amanhã mesmo a venda da escultura para Christian. Tristán esperava conseguir uma boa quantia por uma peça deste tamanho e beleza. Ele hesitou. Que horrível, concluiu. Já se apressara a pensar em resolver seu problema, sem sequer se despedir.

- Sinto muito minha querida, mas não tenho outra escolha.

Incapaz de lidar com o restante da noite, Tristán voltou-se a mais uma garrafa de rum. Ele enganava-se a dizer que a inspiração para sua próxima obra estaria no fundo da garrafa, ou no limiar de sua miséria, o que acontecesse primeiro. Tinha uma vã esperança de que poderia ter uma epifania, daquelas lendárias que consagraram tantos artistas, e que poderia esculpir algo estupendo em poucas horas. Pobre Tristán, adormeceu sem sequer concluir seu tolo pensamento de que a bebedeira ressignificava seu trabalho de alguma forma.

A manhã chegou tão rápido quanto a noite anterior caíra. O escultor abriu os olhos e levantou a cabeça rapidamente, vendo o casebre girar a sua volta. Havia dormido debruçado sobre a mesa, que colocara propositalmente diante da porta que dava acesso ao porão. A cabeça doía e girava, mas depois de tantas manhãs de ressaca, de certo não era a pior delas. Tristán se pôs de pé e destrancou a porta do porão, rumando escada abaixo. Tinha que se certificar de que a umidade não causou mais sulcos enegrecidos na estátua de Valeria.

Tristán enxergava precariamente o porão, graças a luz da manhã que jorrava pela porta acima das escadas. Os sulcos estavam maiores e escorreram dos olhos por toda a bochecha de Valeria. Sinto muito, mas você vai para um lugar melhor, disse. Ao se aproximar para limpar o rosto da escultura, sentiu que um dos pés chutara algo.

Ao abaixar-se para pegar o que era, o espanto.

Um quadro finamente pintado com preto, branco e tons de cinza. Era uma paisagem bonita e pacífica, com um riacho cortando o quadro ao meio. No reflexo do rio, na extremidade inferior, havia uma figura feminina bem delineada, mas a outra estava distorcida. Tristán começou a chorar. Chorava porque reconhecia o local. O rio era doloridamente familiar. Um casal que caminhava, tudo remetia claramente à mente de Tristán ao trágico escorregão.

Mas, mais ainda, ele reconhecera os traços. Havia estudado pintura o suficiente para reconhecer a forma de alguém pintar. E, como o a última carta a ser removida que faria o castelo de Tristán desabar, ele olhou para as extremidades laterais, em busca de assinatura. Lá estava.

A assinatura também era de Valeria.


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⏰ Last updated: Feb 24 ⏰

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