Capítulo 1

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Tristán recobrou os sentidos sentindo o ar gélido da manhã cortar-lhe o corpo. Sentia as roupas ensopadas e um gosto de terra na boca. Não era capaz de dizer o que aconteceu à noite após o incidente. Maldito incidente. Maldito Tristán. No momento lhe faltavam forças até para ter raiva de si. Será que fora dragado pelo rio também? Talvez. Mas... se ele estava vivo, então talvez...

Valeria.

O escultor se pôs de pé como pôde. Sentia o corpo dolorido, para além do frio e da fraqueza. As arvores ao seu redor eram mais altas, e Tristán não as reconhecia. Quem saberia o quanto fora levado pelo rio. Não saberia sequer dizer se estava em Castimón ou Almarca. Mais uma vez, o heroísmo cliché abria espaço para a cruel realidade. Entretanto, o escultor se agarrava a este mísero fio de esperança para achá-la. Tinha que fazer ao menos isso certo.

- Athos, achou alguma coisa, garoto?

A voz feminina despertou Tristán do transe momentâneo. Checando seu redor, avistou entre dois grandes pinheiros a mulher que se aproximava. Era jovem e tinha cabelos loiros, cobertos por um chapéu vermelho estravagante. As roupas acompanhavam o chapéu em cor e excentricidade. Nas mãos da garota, uma besta engatilhava um virote em sua direção. Abaixo dela, quatro cachorros grandes caminhavam, com o pelo acinzentando arrepiado olhos azuis caminhavam que não pareciam piscar nunca. Eram como verdadeiros guardiões. Todos o fitavam, os cachorros rosnando.

- Alto lá, estranho! - Ordenou a mulher.

Tristán congelou.

- Sou apenas um escultor. Fui levado pelo rio por causa das chuvas de ontem. - Anunciou o homem.

A garota começou a se aproximar, colocando a besta sobre os ombros enquanto media Tristán. Os cachorros se aproximavam mais devagar, sem parar de rosnar. 

- Você sobreviveu ao rio? Que sortudo.

Mas Tristán tendia a discordar.

- O-onde eu estou? - arriscou o rapaz.

- Aqui a propriedade da família Lobos. Agora, diga-me, quem é você? - respondeu uma voz mais distante, rouca e grave.

Olhando por cima do ombro da garota diante de si, Tristán avistou um homem que também vestia-se de forma bastante estravagante e também empunhava uma besta. Ele aparentava bastante idade, denunciada pelas rugas no rosto e pela longa barba grisalha. O cabelo lhe faltava à cabeça, apesar de aparecer timidamente nas laterais. Ele aproximava-se com cautela, sem perder a mira da arma em mãos. Seu olhar não era dos mais amigáveis.

- Me chamo Tristán. Tristán Alma. Sou artista da guilda. A chuva me trouxe aqui. - respondeu o jovem, tentando permanecer imóvel como podia, apesar do frio.

- Me mostre o sinete. - Disse o homem, impassível.

O sinete, claro. Tristán vasculhou os bolsos. Por sorte, sacou de um dos bolsos da calça o sinete com a bela figura da ave que representava a guilda dos artistas.

El pavo real.

O homem velho parou lado a lado com a garota e, sem tocar no objeto mostrado na palma da mão de Tristán, o observou. Em seguida, abaixou sua besta.

- Perdão pelos meus modos, jovem. Sou Christián Lobos. Esta é minha filha, Safira. - Disse, apertando a mão de Tristán firmemente.

A família Lobos é das mais nobres famílias de Castimón. Fizeram uma fortuna vendendo cães de caça, armadilhas de urso e peles de animais. Com isso conseguiram comprar terras e mais terras pela cidade. 

- Ele está muito debilitado. Talvez devêssemos cuidar dele. Ele pode ficar na casa do jardineiro. - Disse Safira ao pai.

- Não! - Interrompeu Tristán. - Fico muito agradecido com a hospitalidade, mas devo procurar minha amada, que teve destino similar ao meu. Não a vejo desde ontem à noite, quando o rio e a chuva fez com que nossos caminhos se partissem.

- Nas suas condições, sua busca será inútil. - Anunciou Christián. - Minha filha tem razão. Descanse na casa que um dia pertenceu a nosso jardineiro. E, pela manhã, lhe dou minha palavra de que cederei meus cães para ajudar a encontrar sua amada.

Tristán aceitou, à contragosto. A ideia de perder tempo até o próximo dia para procurá-la era angustiante. Mas, de fato, o escultor estava fraco, com frio e com fome. 

Foi uma caminhada silenciosa para às três pessoas e os cachorros que os cercavam. Tristán era incapaz de dizer o que se passava na cabeça de Christian ou de Safira, mas a sua mente martelava apenas uma cena. 

O escorregão.

Escorregão esse que poderia não ter significado nada. Poderiam até rir dele, anos depois. Mas não. O evento foi coroado com a covardia de Tristán. Lembrar-se de como inutilmente estendia sua mão, engatinhando na lama fazia o escultor odiar-se. Tantos poemas sobre amor, tantas histórias sobre coragem. Tudo para que ele se despisse de todas as ideias e volta-se ao animalesco. Pior ainda, ao patético.

Maldito escorregão, e maldito Tristán.

Memento MoriDär berättelser lever. Upptäck nu